sexta-feira, 30 de julho de 2010

Galeria de arte no coração do Saara

No sudeste do Deserto do Saara encontra-se um dos maiores acervos mundiais de arte rupestre. Desenvolvido pelas populações locais ao longo de sete milênios, essa arte testemunha a grande mudança climática ocorrida na região




Teremos descoberto a Atlântida enterrada?”, escreveu cheio de entusiasmo Henri Lhote em seu caderno de notas, em 1933. Ao tomar conhecimento do conteúdo do relatório de uma patrulha do exército francês na bacia do “oued” (curso d’água) Djerat, esse explorador e etnólogo francês correu para o sudeste do Saara argelino. O que deveria ser uma simples visita científica se converteu logo numa longa exploração arqueológica que durou 18 meses. O que Lhote descobriu nas montanhas de Tassili-n-Ajjer superou todas as suas expectativas: as paredes rochosas desse desfiladeiro de 30 quilômetros de extensão estavam literalmente cobertas de inscrições e, sobretudo, de pinturas rupestres.




Essas pinturas dão testemunho de um mundo único. Nelas, girafas, elefantes, antílopes, leões, bovídeos e cavalos narram a vida dos caçadores e dos pastores de outrora. Tais imagens documentam um Saara verdejante, cheio de vida animal e humana, antes que uma mudança radical do clima na região pusesse fim a um período de abundância sobre esse planalto de 700 quilômetros de extensão por 100 quilômetros de largura. É simplesmente impressionante o contraste entre o que se observa nessas pinturas e a paisagem de deserto árido na qual a região se tornou desde então.


Pintura rupestre do período das “cabeças redondas”
e pintura pertencente ao período “dos bovídeos”.

Lhote identificou quatro estilos sucessivos na execução dessas pinturas e inscrições, cujas datações e características foram depois aperfeiçoadas por outros especialistas. O primeiro período é o das “cabeças redondas”, caracterizado por desenhos inteiramente cor violeta de seres humanos nus, sem diferenciação de sexo. Após a descoberta de tons ocres, as pinturas se tornam mais detalhadas: já é possível distinguir-se a musculatura das pernas e dos braços. Pinturas e inscrições de animais como o búfalo gigante, já extinto, também se encontram entre esses primeiros trabalhos.


As formações geológicas do Parque Nacional Tassili-n-Ajjer
são de uma beleza impressionante, com suas imponentes
montanhas de arenito compondo verdadeiras “florestas” rochosas.


Beduínos contemporâneos e seus dromedários descansam
em pleno deserto esculpido por rochas do Tassili.

As primeiras populações de pastores sedentários do Tassili descobriram então novas cores. A mistura do vermelho e do branco com o ocre, já conhecido, possibilitou uma vasta paleta de nuances, do amarelo claro ao chocolate. Já as pinturas do “período dos bovídeos” correspondem à chegada de bovinos à África do Norte, ao redor de 4500 a.C., e que durou até meados do terceiro milênio antes de Cristo.

Nessa fase, as proporções da pessoa representada são bem exageradas: parece que o importante era o tamanho, e não a beleza. Ao mesmo tempo, homens e animais ganham em termos de realismo. Rebanhos e pastores parecem correr com a velocidade do vento. Perto dessas imagens, nas mesmas paredes de pedra, outras pinturas mostram homens que se banham nas águas de um rio.

O apaixonado Lhote

Durante os 16 meses em que durou sua expedição ao Tassili, Henri Lhote não limitou seu trabalho a simples levantamentos do material encontrado na área. Indo muito mais além, ele classificou as pinturas, estabeleceu grupos e conjuntos com características bem definidas, procurou atribuir a eles um lugar no tempo. Nasceu assim a primeira classificação das pinturas do Saara central, da qual as linhas principais se ajustam perfeitamente às classificações de arte rupestre estabelecidas por outros estudiosos como Flamand e Monod.

Os primeiros croquis das pinturas e inscrições rupestres do Tassili foram feitos, no fim da década de 1930, pelo tenente Brenans, eminente especialista em pré-história que acompanhou Lhote na região de Djanet. O sonho de ambos era tornar conhecidos no mundo os misteriosos desenhos do Tassili. Eles foram finalmente apresentados ao mundo científico no congresso de pré-história, realizado em Argel, em 1952.

Em 1956, o Museu do Homem, de Paris, na França, chamou Lhote para dirigir uma grande campanha destinada a inventariar o acervo rupestre do Tassili. A descoberta desses desenhos constitui o acontecimento mais importante no setor das pesquisas sobre pré-história naquela época.

A seguir, representações de cavalos mostram um progressivo desenvolvimento cultural dos habitantes do Tassili. É o “período dos cavalos”, que corresponde à introdução desses animais no norte da África, segundo atestam descobertas arqueológicas, em cerca de 2000 a.C.

Finalmente, ao redor dos anos em que Jesus Cristo viveu, tem início no Tassili um “período dos camelos”, também correspondendo aos tempos em que esses animais (na verdade dromedários) surgiram na África do Norte. Pouco a pouco, os dromedários se tornam os animais de carga por excelência na região, ao mesmo tempo que, curiosamente, a pintura rupestre perde sua importância na vida das comunidades humanas.




No Tassili, o período dos camelos assinala o retorno ao desenho rudimentar. As descrições de cenas do cotidiano tornam-se cada vez menos realistas. Ao mesmo tempo, as pinturas começam a apresentar outros elementos, tais como carruagens e escudos, além dos já citados dromedários.

Embora próxima da Península Ibérica – onde também há abundância de arte rupestre primitiva –, acredita-se que essa arte na Argélia e sobretudo no Tassili se desenvolveu de forma independente dos estilos da Europa.

Quanto às pinturas do período das “cabeças redondas”, Lhote observou um importante paralelo estilístico com os desenhos da antigüidade egípcia. Ele descobriu inclusive seis desenhos de barcos de um modelo de uso corrente no Nilo.

“Os pastores do Tassili mantinham uma relação com a civilização egípcia. Eles provavelmente vieram do leste e se fixaram aqui”, conclui o arqueólogo. Ao mesmo tempo, vários elementos de outros desenhos sugerem que parte dos habitantes do Tassili não era originária do Egito, e sim da África Negra.

“Não descobrimos a Atlântida”, admitiu Lhote ao final de sua viagem, “mas aprendemos algo muito mais importante. Podemos provar que o Saara central é, desde o Neolítico, um dos mais importantes sítios de colonização da pré-história. Há muito tempo, o deserto estava recoberto por gigantescos prados verdejantes e povoado por numerosas civilizações que nos deixaram o testemunho de sua existência.”

.:: Revista Planeta

Um comentário:

  1. Muito legal este texto sobre pintura rupestre no Saara é importante perceber o quando as regiões podem se modificar com o tempo, avegetação, os costumes, avida em si.

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