segunda-feira, 5 de abril de 2010

Libéria: um sonho americano

No século 19, os Estados Unidos tentaram repatriar ex-escravos à África. Para isso, compraram um pedaço de terra e criaram um país artificial, que até hoje parece não conseguir acordar desse pesadelo




"Sei que aqui terei uma vida digna, pela primeira vez”, disse, emocionado, o refugiado liberiano Joseph Morgan, de 34 anos, ao comitê de recepção das Nações Unidas no Canadá, em outubro do ano passado. Um século e meio antes, os ancestrais de Morgan haviam pronunciado palavras muito parecidas, em uma situação muito diferente. Eles acabavam de desembarcar na Libéria, do outro lado Atlântico, na costa ocidental da África, um país fundado em 1824 para servir de lar aos negros americanos. Não podiam imaginar que no século 20 a realidade se encarregaria de destruir uma a uma suas aspirações. Os 315 mil refugiados liberianos que vivem hoje nos países vizinhos são a face mais cruel da derrocada do sonho americano na África. Vítimas de 14 anos de guerra civil, da pobreza e da falta de perspectiva, para muitos o caminho de volta à América – terra de onde saíram seus antepassados – representa agora a promessa de uma vida melhor.

Por trás do fracasso da Libéria, um país com renda per capita anual de meros 100 dólares e expectativa de vida de 42 anos, há uma longa história de guerras, conflitos étnicos e intolerância, fomentados por interesses econômicos e imperialistas, muitas vezes inconfessáveis.

Apesar de ter sido criada oficialmente em 1830, a Libéria começou a germinar muito antes, logo depois do fim da Guerra da Independência (1776-1783) nos Estados Unidos. Muitos negros americanos que lutavam contra a Inglaterra ganharam como prêmio a liberdade. Pela primeira vez, esses ex-escravos circulavam livremente pelas cidades, para espanto da comunidade racista da época.

Na Inglaterra, ocorria o mesmo. A lei antiescravagista de 1772 fez com que os poucos negros residentes no país tomassem as ruas, desagradando a maioria da população. No fim o século, os britânicos tiveram a idéia de mandar 411escravos libertos para Serra Leoa (país vizinho da futura Libéria), então uma colônia britânica. Quase todos morreram, devido às precárias condições de vida no lugar. Mas os ingleses não desistiram e, em 1800, mandaram mais uma vez centenas de ex-escravos para Serra Leoa. A iniciativa repetiu-se diversas vezes, até que uma comunidade se formasse na África.

O projeto britânico serviu de inspiração aos americanos. Tanto abolicionistas do norte como senhores de escravos do sul queriam enviar os negros para bem longe – os primeiros, movidos por um declarado sentido humanitário de proporcionar aos escravos uma vida livre de preconceito. Os segundos, por temer revoltas. Os fazendeiros do sul passaram a condicionar a alforria à volta para a África.

Em 1816, um ano após a proibição do tráfico de escravos nos Estados Unidos, foi fundada a ACS (sigla para American Society for Colonization, ou “sociedade americana para a colonização”). A entidade sem fins lucrativos contava com o apoio de órgãos governamentais, políticos, fazendeiros e trabalhadores e patrocinou, naquele mesmo ano, a primeira tentativa de mandar ex-escravos americanos para o continente africano. O local escolhido foi a Ilha Cherbro, em Serra Leoa.

Os Estados Unidos obtiveram permissão da Inglaterra para instalar os colonos na ilha. “Os britânicos, em plena Revolução Industrial, viam na iniciativa a possibilidade de criar um mercado consumidor abrangente que pudesse gerar demanda para a produção de bens em larga escala”, diz Priscilla Schillaro, historiadora da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos. “Além disso, pareceu uma boa idéia apoiar a existência de uma colônia pró-Estados Unidos na África, como forma de inibir o tráfico negreiro internacional, o inimigo número 1 dos britânicos naquele momento.”

Mas a primeira iniciativa de criar uma colônia americana no continente fracassou. A maioria dos 88 passageiros do navio Elizabeth morreu de febre amarela e malária em poucas semanas. Em 1821, a ACS enviou um representante, o diplomata Eli Ayres, para escolher um sítio mais apropriado para o assentamento. Ele (devidamente acompanhado por um pequeno exército de 70 homens) navegou cerca de 200 quilômetros pela costa da África nas proximidades de Serra Leoa, e escolheu uma área que foi chamada de Cabo Mesurado – local da atual capital do país. Só que a terra já tinha dono. Pertencia às tribos Dey e Bassa, habitantes do local há séculos. “Depois de negociações nem sempre amistosas, os chefes tribais cederam aos americanos uma faixa litorânea de 40 quilômetros de comprimento por 4 quilômetros de largura em troca de armas e garrafas de rum que hoje valeriam, juntas, 300 dólares”, afirma James Riley, professor do departamento de história da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos.

Em 1824, o governo americano fundou oficialmente a colônia da Libéria e passou a chamar sua capital de Monróvia, em homenagem ao presidente dos Estados Unidos, James Monroe. Segundo Priscilla Schillaro, os primeiros cidadãos liberianos foram os sobreviventes da trágica excursão para a Ilha Cherbro. Em seguida, começaram a chegar levas de americanos (até 1850, 4 571 pessoas desembarcaram em Monróvia). “No início, a administração foi entregue a representantes escolhidos pela própria ACS. Mas, com o crescimento populacional e o progressivo alargamento do território, começaram a surgir lideranças locais entre os ex-escravos”, diz ela. Na expectativa de aumentar as áreas cultiváveis, esses primeiros moradores passaram a adquirir mais terras e avançar suas fazendas além das fronteiras originais. Em menos de 40 anos, o país cresceu duas vezes de tamanho.

Não foi surpresa para ninguém quando surgiram as primeiras desavenças com as tribos locais, principalmente com os grebos e crus. Segundo Riley, as fronteiras traçadas pela ACS dividiram etnias aliadas e reuniram no mesmo território cerca de 15 etnias, algumas delas inimigas há séculos. “Os conflitos eram inevitáveis.”

Além disso, enquanto as áreas litorâneas colonizadas pelos negros americanos prosperavam com plantações de mandioca e café e a extração de borracha, o interior habitado pelas tribos africanas era totalmente negligenciado.

Nesse clima de instabilidade, a Libéria proclamou sua independência política, em 1847, mas permaneceu estreitamente atrelada à política e à economia dos Estados Unidos, que compareciam também com armas e navios de guerra. O que era fundamental, já que o país estava espremido entre dois poderosos impérios: a Inglaterra, em Serra Leoa, e a França, na Costa do Marfim.

Os interesses estrangeiros, somados ao isolamento da elite interna, passaram a gerar conflitos cada vez mais freqüentes. E cada vez mais irreversíveis, No fim do século 19, o auxílio americano começou a minguar e os liberianos tiveram de se virar sozinhos. E se deram mal. Em 1903, os britânicos forçaram a Libéria a entregar parte de seu território a Serra Leoa, e os franceses avançaram sobre a fronteira com a Costa Marfim. O país, envolvido em tantos conflitos, estava à beira da falência, quando o presidente Theodore Roosevelt providenciou, em 1905, uma ajuda de 1,7 milhão de dólares. Em 1920, chegaram mais 5 milhões de dólares.

Seis anos depois, a Libéria teve de começar a pagar a dívida. O governo liberiano cedeu uma enorme área de 1 milhão de acres (ou 22 mil estádios do Maracanã) para a indústria americana de pneus Firestone explorar borracha. Em 1943, ocorreu de novo: em troca da construção de um porto em Monróvia pelos americanos, o país permitiu que a empresa Republic Steel, com sede nos Estados Unidos, explorasse suas reservas de ferro, em uma época que a indústria siderúrgica estava em franca expansão no mundo todo.

Apesar de tudo, os lucros obtidos com o comércio de ferro e borracha operaram uma espécie de milagre econômico nos anos 40, o que durante alguns anos aumentou a renda da população, principalmente da classe média. Os novos-ricos passaram a comprar terras em áreas antes habitadas exclusivamente por nativos, o que colaborou para acirrar os conflitos.

“Os membros do governo invariavelmente eram membros da elite formada pelos descendentes de americanos, enquanto 95% da população formada por etnias locais sentia-se marginalzada”, diz Riley. Em 1943, foi eleito presidente o descencente de americanos William Tubman. Ele mudou a Constituição para ficar no poder por sete mandatos consecutivos. Também censurou a imprensa e passou a perseguir os opositores de seu governo. Tubman só deixou o poder em 1971, quando morreu.


Guerra Civil na Libéria.

Em seu lugar, assumiu o vice-presidente William Tolbert, que governou em constante clima de tensão. Em 1980, um grupo de jovens líderes guerrilheiros de várias etnias se uniu para tomar o poder, liderado pelo sargento Samuel Doe, então com 28 anos. De início, o novo governo foi aclamado em praça pública. Mas logo as esperanças de um futuro melhor evaporaram. O novo presidente começou a favorecer os membros da sua etnia, os krahns, em detrimento de todas as outras que conviviam no pequeno país, localizado em uma área do tamanho do estado de Pernambuco. Os grupos dan e mano, habitantes do norte da Libéria, passaram a ser duramente perseguidos. Em 1985, Doe declarou-se vencedor de uma eleição que havia perdido e instituiu uma ditadura.

Um novo golpe de Estado ocorreu na noite de Natal de 1989. As tribos que vinham sendo discriminadas por Doe ocuparam a linha de frente da revolta. No comando, estava Charles Taylor, que havia sido ministro de Doe, e fora afastado por corrupção. Doe foi capturado e morto. Teve início uma guerra civil entre grupos tribais que disputavam o poder, que durou sete anos. Os banhos de sangue só terminaram com a intervenção de tropas internacionais.

A paz, no entanto, durou muito pouco. Em 1996, dissidentes que estavam aquartelados na Guiné invadiram o país. A nova guerra civil finalmente terminou em outubro de 2003, com a eleição de um governo de conciliação nacional e, de novo, com a intervenção militar dos americanos. Em mais de uma década de lutas internas, os assassinatos brutais, as torturas e a destruição de Monróvia enterraram de vez os pilares de liberdade construídos pelos esperançosos ex-escravos americanos que dançaram ao ritmo das grandes potências dos séculos 19 e 20. Desde 1989, quando eclodiu o primeiro conflito, muitos liberianos, como Joseph Morgan, se viram obrigados a deixar sua pátria para salvar a pele, tornando-se refugiados políticos nos países vizinhos, na Europa, ou de volta aos Estados Unidos. Com a economia em frangalhos, a Libéria agora tenta refazer o sonho dos primeiros imigrantes, que tinham orgulho em pronunciar o nome do país, uma homenagem à liberdade.

Trancos e barrancos


Cédula da Liberia de 5 Dolares.

1816
A American Colonization Society envia a primeira leva de imigrantes para a África. Quase todos morrem.

1821
Um representante da ACS percorre a costa africana e escolhe o local para instalar a colônia: entre Serra Leoa e Costa do Marfim.

1824
Chegam os primeiros colonos. O novo país ocupa uma faixa de 40 quilômetros de comprimento por 4 de largura.

1827
Os estados do Mississipi e Indiana condicionam a libertação de escravos à deportação para a África.

1847
O descendente de escravos Joseph Jenkins Roberts, colono imigrado da Virginia, declara a independência da Libéria.

1848
A primeira Constituição do país garante privilégios aos descendentes de americanos. Roberts é eleito presidente.

1850-1920
A Libéria perde terras para as colônias vizinhas e enfrenta conflitos internos com as etnias locais.

1867
Mais 13 mil pessoas chegam à Libéria, após a Guerra Civil americana (1861-1865) e o fim da escravidão.

1869
O True Whig Party, partido que governaria o país até 1980, é fundado pela elite formada por imigrantes americanos.

1875
Explode uma revolta da tribo grebo contra o governo. Os Estados Unidos mandam navios e armas para garantir a paz.

1903
O governo britânico e a Libéria assinam um acordo sobre os limites da fronteira com Serra Leoa.

1923
A indústria americana Firestone recebe o direito exclusivo de exploração de borracha na Libéria.

1944

William Tubman, do True Whig Party, é eleito presidente. Ele ocuparia o cargo até 1971, ano de sua morte.

1946
Quase 50 anos depois de proclamada a República, membros das tribos africanas conquistam o direito ao voto.

1971
Morre o presidente Tubman. Seu substituto, o vice William Tolbert, assume sob extrema pressão.

1980
Um golpe militar liderado por Samuel Doe, membro de uma etnia local, tira o True Whig Party do poder.

1985
Convocadas eleições diretas para presidente. Derrotado, Doe se declara vencedor e institui uma ditadura.

1989
Charles Taylor comanda um novo golpe de Estado. Várias etnias lutam pelo poder em uma guerra civil sangrenta.

1995
As forças internacionais negociam uma trégua entre as facções guerrilheiras. A paz duraria meses.

1996
Guerrilheiros descontentes com o tratado invadem a Libéria, vindos da Guiné, e dão início a novos conflitos.

2003
Em outubro, assume um governo de reconciliação nacional que põe fim à guerra civil. Até quando?

Da Bahia para a África


Os escravos malês foram os agentes centrais
da revolta que tentou tomar a cidade de Salvador.

A viagem de volta para a África também foi feita por ex-escravos brasileiros, no século 19, após revolta dos malês (como eram conhecidos os negros muçulmanos na Bahia), que tomou as ruas de Salvador por três horas, em 1835. Cerca de 70 pessoas morreram e mais de 500 foram punidas com deportações para a África, prisão e morte. Proporcionalmente à população da época, seria como se 24 mil dos 3 milhões de habitantes da Salvador atual tivessem sido expulsos da cidade. Segundo o historiador João José dos Reis, autor de Rebelião Escrava no Brasil, após o movimento dos malês, o governo baiano ficou assustado com o poder de organização dos escravos e criou uma lei que permitia “reexportar africanos libertos sob simples suspeita de promover, de algum modo, a insurreição de escravos”. Com ela, a situação da população de ex-escravos ficou muito difícil. “Os 4 615 negros libertos foram proibidos de alugar imóveis e seus títulos de propriedade anulados”, afirma Reis.

Salvador tinha na época 65 500 habitantes. Os ex-escravos eram pequenos comerciantes, artesãos, pedreiros, mestres-de-obras e vendedores ambulantes, atividades que rendiam algum dinheiro e permitiram que uma parte deles pagasse pela viagem até a África. A imigração para o Benim e a Nigéria, de onde haviam partido a maior parte dos escravos muçulmanos da Bahia, continuou até o início do século 20. Entre 5 e 8 mil pessoas voltaram para a África. A chegada dos brasileiros provocou muitas mudanças. Para começar, os imigrantes constituíram uma elite de comerciantes e artesãos. Muitos enriqueceram a ponto de poder mandar os filhos estudar na Bahia, o que era considerado muito chique. No fim do século 19, alguns conseguiram bancar os estudos dos filhos até na Inglaterra. Os brasileiros revolucionaram os hábitos locais. As casas, quase todas térreas e sem janelas, foram substituídas pelos sobrados com dois ou três andares, típicos do estilo colonial brasileiro.

As moradias também ganharam móveis, como sofás, camas, mesas e cadeiras de balanço, desconhecidos dos africanos da época. As visitas eram recebidas com sucos de frutas colhidas no pomar, coisa que eles também nunca tinham visto. A vida cultural também mudou muito. A comunidade brasileira passou a organizar serões musicais e peças teatrais. Os africanos também foram apresentados às festas brasileiras, como a Epifania e o Carnaval. Mesmo a culinária, sofreu grandes transformações. Pratos típicos da Bahia no século 19, como o mingau e o pirão de caranguejo, foram perfeitamente inseridos na cozinha local.

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2 comentários:

  1. Será que ingleses e seus filhos norte-americanos só conseguem deixar no mundo rastros de sangue e horror,por onde passam? Por que esta semente malígna ainda impera ? Ou será que ela apenas cumpre e realiza,em tempo real, o Inferno de Dante?

    Será mesmo que todos os seres ,animais,humanos e a própria natureza,estão condenados a nunca crescer,evoluir pra conhecer a bondade da vida em paz?

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  2. Sr. Radeir.
    Seu comentário é totalmente equivocado,se se existe um pouco de paz no mundo hoje é graça a este povo , e digo mais quem dera se a gente brasileiro fosse 1/3 do nacionalismo e patriótico com está raça.

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