terça-feira, 15 de junho de 2010

Entre tribos selvagens

Uma visita ao vale do Rio Omo, na Etiópia, um dos cantos mais isolados da África, onde as tribos guerreiam entre si como há milhares de anos


A festa dos nyagatons os guerreiros mais poderosos do vale do Rio Omo.

Depois de vinte dias navegando pelo Rio Omo, os sentidos começam a se adaptar. Especialmente o olfato. Não existem os perfumes, os cheiros e a poluição da civilização, que deixam o nariz atordoado. Aqui é o sertão do vale do Rio Omo, na Etiópia, a 800 quilômetros de Adis-Abeba. As duas margens do rio são altas, mas pelo cheiro dá para saber o que acontece acima do barranco. O odor da madeira queimada significa que alguém está acampando, o de excremento de gado é sinal de que estão tocando o rebanho em direção ao rio. Todas essas informações são trazidas a distância pela brisa morna. Desta vez, o cheiro de gado chega bem antes do ruído das reses e da visão dos guerreiros nyagatons, na contraluz, imóveis debaixo do sol da tarde, no alto da margem. O calor é de quase 40 graus, e os guerreiros contemplam, em silêncio, o pequeno barco em que viajamos.


Guerreiros Nyagatons.

O comportamento-padrão dos nyagatons é intimidatório, seja pela atitude, pela maneira de falar ou pelo armamento que carregam (desse lado do rio todos usam o G3, um fuzil de assalto alemão, com maior poder de fogo do que o AK-47, mais comum na região), e eles estão em guerra, expulsando as outras tribos. No momento estão de olho na tribo dos mursis, que, para escapar às emboscadas constantes, se retiraram para as montanhas. A atitude agressiva muda quando percebem que nosso guia é também um nyagatom. As apresentações são feitas, e tudo fica combinado: quando voltarmos amanhã encontraremos uma multidão de guerreiros que deixarão as armas de lado para dançar com as mulheres da tribo. Alegres, festejarão a presença de estrangeiros.




O acesso por terra ao vale do Rio Omo é precário. O melhor caminho é pelo rio, mas só quando está cheio, logo após a estação das chuvas, que termina em setembro. Um único empreendedor, o holandês Hallewjin Schurman, montou acampamentos na região e leva para lá pequenos grupos de turistas em barcos motorizados. É uma viagem fascinante a um mundo perdido. Entre o acampamento e os nyagatons navegamos quatro horas contra a correnteza do Omo, que, cheio de curvas, desliza entre matas de figueiras e tamarindos, cerrados e desertos. Sempre em alta velocidade, e em ziguezague, evitamos os pedaços de madeira que o rio arrasta e os hipopótamos que, sem avisar, emergem à nossa frente. Crocodilos de todos os tamanhos, alguns leões e um par de leopardos nos contemplaram indiferentes. Encontrar os nyagatons é um momento mágico emoldurado por uma paisagem bela e selvagem.

A Etiópia é o único país do continente africano que nunca foi colônia européia. Na década de 70, o último imperador, Haile Selassie, foi deposto por um violento golpe de Estado de orientação marxista, e a normalidade só voltou em 1995. Com suas verdes montanhas de picos impressionantes, seus vales cultivados e rios caudalosos, a Etiópia é uma espécie de caixa-d'água da África Oriental. O Nilo Azul, por exemplo, nasce nas montanhas etíopes. Apesar disso, o país é lembrado sobretudo pela fome tristemente famosa e pela guerra com a Eritréia, que terminou em 2000. O vale do Rio Omo, na fronteira com o Sudão e o Quênia, é uma área de mais de 4.000 quilômetros quadrados com intensa vida tribal e muito pouco visitada.


Delta do rio Omo.

O rio, que nasce ao sudoeste de Adis-Abeba, capital da Etiópia, percorre quase 1.000 quilômetros, mas não chega ao mar. É o principal afluente do Lago Turkana, no Quênia. O Omo divide a vida no vale: ao leste, as tribos dos karos, dos hamares e dos mursis. Do outro lado, os nyagatons e os quegos. Todos vivem da criação de gado. Mesmo os dassanechs, mais ao sul, na entrada do Lago Turkana, apesar de cultivar o sorgo (o cereal é armazenado em pequenas bolas feitas com galhos secos no alto de torres precariamente construídas para evitar a umidade), também são criadores de gado.


Guerreiros karos, que recentemente abandonaram a vida nômade
e agora vivem em três aldeias. Além do fuzil, cada homem
também leva um banquinho para não sentar no chão.


Casal karo diante de sua casa.

O aumento da população e dos rebanhos tornou letal a disputa por território. A única maneira de expandir o próprio domínio é com a ajuda dos fuzis AK-47 que cada habitante do vale carrega displicentemente no ombro. Uma bala custa 25 centavos de real. Os hamares vivem nas montanhas e praticam uma economia de subsistência agropastoril. Organizam-se segundo um elaborado sistema de agrupamento social por idade. Passar de um grupo a outro envolve complicados rituais. A maturidade, dizem misteriosamente os mais velhos, só acontece quando o coração chega aos olhos. Os mursis são reconhecíveis pelos desenhos brancos que cobrem seu corpo e pelo pedaço circular de madeira que as mulheres usam no lábio inferior. A origem do adereço está nos tempos em que os mursis eram perseguidos para ser vendidos como escravos. Foi a maneira encontrada para tornar as mulheres menos atrativas. Hoje é um sinal de beleza. Os karos são pouco mais de 1.500 e abandonaram alguns anos atrás a vida nômade. Vivem essencialmente em três aldeias – Labuck, Duss e Korcho – e praticam um rígido controle de natalidade. Crianças nascidas fora do casamento são deixadas para morrer debaixo de um arbusto com a boca cheia de areia.


Quando os mursis eram perseguidos por caçadores de
escravos, suas mulheres tentaram ficar feias com a
deformação do lábio. Hoje, tribo acha bonito o ornamento.


Guarda nyagatom na beira do Rio Omo. O nome
da tribo significa "comedores de elefantes".

Os quegos são os menos numerosos. Eram escravos dos karos, mas recentemente foram liberados pelos nyagatons, a tribo mais numerosa e feroz. A palavra nyagatom significa "comedores de elefantes", e eles se esforçam para demonstrar que são realmente destemidos. Caçam crocodilos em pé sobre uma canoa, armados apenas de um arpão, ou passam temporadas servindo como mercenários para os conflitos do vizinho Sudão (a fronteira está a menos de 100 quilômetros dali). A circuncisão masculina e a infibulação feminina, as punições por chicotadas, tudo continua sendo feito da mesma maneira através de gerações. As crianças aprendem desde cedo que não existe a palavra "ladrão". Roubar é permitido, mas quem é apanhado acaba chicoteado.
A prática da escarificação e da pintura corporal atinge patamares sofisticadíssimos. Para eles, a escarificação é um atestado de bravura. Um guerreiro não pode ostentar nenhuma cicatriz até que tenha matado um inimigo. Para uma mulher, as cicatrizes são uma maneira de ficar atrativas para os homens. As escarificações são feitas com facas, pedras ou pregos. Depois a ferida é coberta com cinzas. Isso provoca uma pequena infecção, que, mais tarde, vai deixar a marca com relevo na superfície da pele. Com suas tradições preservadas, o vale do Rio Omo é um museu de história natural ao vivo e em três dimensões.

.:: Revista Veja Online

Um comentário:

  1. Muito interessante suas informações, ontem assisti a um programa na tV educativa da Bahia em que um explorador convivi por algun tempo com um povo com caracteristicas muito proximas deste povo da Etiopia, tem algumas diferenças como o adorno nas mulheres que é de barro e não de madeira, mas todos tem fuzise praticam a scarinificação. Gostei do texto tenho um blog africabrasis.blogspot.com, está no inicio mas eu gostaria de colcar mais textos interessantes como o seu, porem tenho medo de estar me apropriando indevidamente deles.

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