quinta-feira, 24 de junho de 2010

A expansão árabe na África

A gesta dos almorávidas (1056-1147)


O Império Almorávida em sua maior extensão (1110).

Os almorávidas, cuja dinastia começou em 448 (20 de março de 1056), eram formados por várias tribos que se diziam descender de Himyar. As mais célebres são as de lamtuna (ou lemtuna), da qual o príncipe dos crentes Ali ibn Taxufin faz parte, e os chadala. Saídas do Yêmen nos tempos de Abu Bakr Siddiq, que as enviou para a Síria, elas passaram depois para o Egito e depois se transferiram para o Magreb, com Musa ibn Nusayr. Seguiram depois para Tariq até o Tanger, mas seu gosto pelo isolamento as empurraram para o interior e ali habitaram até a época que vamos tratar (Kamil fi-l-Tarij, de Ibn al-Athir. In: SÁNCHEZ-ALBORNOZ, 1986, tomo II: 108).

No século XI, do Saara Espanhol ao Marrocos, surgiu um poderoso movimento berbere islâmico que varreu a costa setentrional da África até chegar à Península Ibérica, conferindo um novo caráter e dramaticidade tanto às culturas da África do Norte quanto à Reconquista Ibérica cristã. Para entendê-lo, é preciso levar em conta que, durante muito tempo, os berberes, como vimos, foram reticentes com o Islã, mas depois de terem se convertido transformaram-se em uma das etnias africanas que abraçaram a fé do Corão com mais força.
No entanto, no século X, o Islamismo ainda era praticado em muitas áreas orientais africanas de maneira bastante permissiva. Isso ocorria especialmente com muitas tribos de chefes berberes da costa atlântica da Mauritânia, como os sanhadjas. Por exemplo, eles cumpriam a obrigação da peregrinação a Meca somente como uma formalidade política. Assim, ao retornar de Meca e parar em Kairuan, Yaya ibn-Ibrahim, chefe dos djoddalas, foi se consultar com um sábio muçulmano de nome Abu Amiru (de Fez) e foi repreendido por este por sua ignorância em relação à fé.

O sábio, chocado com o baixo nível de conhecimento da Lei corânica dos djoddalas, decidiu procurar um teólogo para instigá-lo a ir até àquele povo berbere e guiá-lo à luz da verdade sagrada. Encontrou Abdallah ibn Yacine, um grande letrado da cidade de Sidjilmasa, que aceitou ir pregar entre os djoddalas.

Contudo, os berberes o receberam muito mal. Não gostaram nem um pouco das práticas ascéticas de Yacine, queimaram sua casa e o expulsaram. Yacine então se retirou (cerca de 1030) com dois discípulos da etnia berbere dos lemtunas, Yaya ibn Omar e seu irmão Abu Bakr (não confundir com o califa do mesmo nome do século VII), para algum lugar desconhecido da costa atlântica. Foi então que começaram a receber adeptos. Quando chegaram ao milhar, Ibn Yacine batizou-os de Al-Morabetin (aqueles do ribat), palavra que deu origem a almorávida.

O ribat era uma espécie de convento militar muçulmano erguido nas fronteiras do dar al-islan (a “Casa do Islã”) e que acolhia voluntários piedosos que desejavam se retirar do mundo e que ali ficavam sob as ordens de um veterano (sheikh) para se purificar e sair em missões conforme o desejo do sheikh (DEMURGER, 2002: 43). Demurger define o ribat em uma obra dedicada às ordens militares cristãs porque muitos historiadores consideram o ribat o antecessor islâmico das ordens militares e o autor discute essa tese, da qual discorda).

A idéia de posto de vigília e mosteiro fortificado foi mais tarde valorizada pelo sufismo: os sufis levavam um modo de vida que buscava a união com Deus por meio do amor, do conhecimento baseado na experiência e ascese, que levaria a uma união estática com o Criador. Essa invocação tinha o objetivo de desviar a alma das distrações mundanas para libertá-la até o vôo da união com Deus. Uma das formas do dhikr era um ritual coletivo chamado hadra: os participantes repetiam constantemente o nome de Alá, cada vez mais rapidamente, até se chegar a um transe e perda da consciência do mundo sensível (COSTA, 2002: 73-74).

No tempo dos almorávidas não se têm notícias desse sentido preciso de guarnição religiosa. Nessa época, a palavra ribat significava “sua seita, seu corpo, suas forças, sua guerra santa”. O único autor que empregou a palavra precisa de rabita (fortaleza) foi Ibn Abi Zar, em sua obra Rawd al Qirtas (de 1326), portanto, duzentos anos depois do período de Yacine (KI-ZERBO, s/d: 143).

A missão dos almorávidas era impor a verdadeira fé pela força aos não-crentes. A partir de 1042, eles se lançaram em uma furiosa jihad a partir das regiões do Adrar e do Tagant, ambas hoje no coração do Saara Espanhol, contra os djoddalas e os lemtunas, tendo Yacine como chefe espiritual e Yaya como general. Negros do Tekrur logo se juntaram a eles, desejosos de se opor ao Império de Gana. Yaya foi expulso do exército, por não concordar com os saques e violações cometidos por seus soldados.
Após um breve e novo retiro espiritual, ele conseguiu novas adesões de discípulos e se lançou novamente no deserto. Isso, somado à pregação religiosa de Yacine, fez com que as forças almorávidas ganhassem uma grande adesão de soldados (cerca de 30.000 homens armados de lanças, machados, maças, a pé, a cavalo e em camelos). Esse motivado exército religioso varreu todo o Sudão ocidental.


Mesquita de Koutoubia, Marrakech (séc. XII)

Yaya morreu em 1056 em uma batalha contra os djoddalas próxima a Atar. Yacine atacou o Marrocos (Maghreb el-Acsa) e morreu no ano seguinte, quando os almorávidas passaram a ser dirigidos pelo emir Abu Bakr. Este fundou em 1062 a cidade de Marrakech, apoderou-se de Fez, Tlemcen (capital dos zenatas) e alargou seu poder até Argel. Depois disso, Abu Bakr retornou para o sul e se instalou no Tagant, decidido a atacar e submeter o Império de Gana.

Os almorávidas na Península Ibérica

Mas antes de tratar do declínio de Gana e de sua derrota para as forças almorávidas, abro um pequeno parêntese à conquista almorávida da Península Ibérica (1092-1094), devido à sua importância para o processo da Reconquista cristã. Nas palavras do conde D. Pedro de Portugal, filho bastardo do rei D. Dinis e famoso cronista do século XIV, os almorávidas eram “os melhores cavaleiros que os mouros tinham” (Crónica Geral de Espanha de 1344, 1990, vol. IV, cap. DLXVIII: 34).

Esses monges-soldados muçulmanos haviam declarado uma guerra santa contra “os muçulmanos depravados dos reinos ibéricos” (CAHEN, 1992: 295).


O movimento almorávida – do Saara Espanhol à Península Ibérica
( 1042-1087); KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra I.
Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 144.

Mesmo antes da invasão almorávida na Península Ibérica, os governantes dos reinos de taifas, mais tolerantes com a convivência e a afinidade entre moçárabes e andaluzes, já não se interessavam pela guerra santa. A palavra taifa (que significa “partido, facção”) designa os principados que se constituíram na Hispânia sobre os restos do califado omíada de Córdoba (MIQUEL, 1971: 216).

Por exemplo, o rei de Granada, ‘Abd Allãh Nãsir, conta em suas memórias que o hadjib Almançor (Muhammad ibn Abi ‘Amir) não conseguiu convencer os andaluzes a fazer a guerra, pois eles “...declararam-se incapazes de participar nas suas campanhas e alegaram (...) que não se achavam preparados para combater e, por outro lado, que a sua participação nas campanhas os impediria de cultivar a terra” (MATTOSO, 1985: 194).
Outro bom exemplo da nova mentalidade dicotômica desses invasores berberes é a obra Ódio a cristãos e judeus do pensador cordovês Ibn Abdun (séc. XII):

Um muçulmano não deve fazer massagem em um judeu nem em um cristão, nem tirar suas sujeiras ou limpar suas latrinas, pois o judeu e o cristão são mais indicados para essas atividades, que são tarefas para gentes vis (…)

Deve proibir-se às mulheres muçulmanas que entrem nas abomináveis igrejas, pois os clérigos são libertinos, fornicadores e sodomitas.
(Tratado de Ibn Abdun. In: SÁNCHEZ-ALBORNOZ, tomo II: 219)


Curiosamente, os almorávidas praticavam a cinofagia – morte de cães – uma prática e hábito culinário pré-islâmico presente em um hadith do profeta: “Os anjos não entram em uma casa onde há um cão”:

A Hadith consiste na tradição oral das tribos que habitavam a Arábia mais os ensinamentos de Maomé que não foram para o Livro, mas que foram se formando através dos anos. Esta tradição é que conta a história do Profeta, dos santos e dos outros profetas menores, entre estes Jesus.

Os mulçumanos acreditam também nos gênios, fadas, nos espíritos bons e maus, em práticas mágicas e outras coisas que, proibidas aos fiéis, podem ser usadas pelos descrentes (KHALIDI, 2001: 16-17).


Eles também inovaram a sociedade dos nômades berberes e as das fronteiras do mundo negro, trazendo inovações táticas no modo de se fazer a guerra. Acrescentaram aos exércitos regulares três fileiras de arqueiros – precedendo a Europa cristã em quase dois séculos na superioridade da infantaria de arqueiros sobre a cavalaria. Além disso, numa revolução ideológica dos aspectos mentais do conflito, incluíram grupos com grandes tambores, com o intuito de aterrorizar os inimigos.


Exército muçulmano partindo para o ataque (1237) ; Iluminura
das “Estações de Hariri” (1237), manuscrito da Biblioteca Nacional
de Paris. Esta cena representa uma pequena paragem antes do ataque
decisivo, quando tocam as trombetas e rufam os tambores. Ela pode
estar se referindo a uma das primeiras batalhas do Islão na Península
Ibérica. No entanto, os trajes dos guerreiros e os jaezes das montadas
apontam para uma origem oriental e para a época em que a iluminura
foi elaborada. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal.
Antes de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, s/d, p. 399.

Este novo estilo de guerra, mais agressivo, era marcado basicamente pela fundamentação religiosa (MATTOSO, 1985: 194). Isto os distinguia dos outros islamitas andaluzes da Península, desprezados pelos berberes almorávidas. Assim, aconteceu a partir do século XI uma “internacionalização” do conflito na Península Ibérica.

De um lado, cristãos peninsulares ligados ideologicamente ao restante da Europa, especialmente ao reino franco; de outro, muçulmanos ibéricos dos reinos de taifas auxiliados pelo conjunto de aliados da África do Norte, por sua vez intransigentes na ortodoxia. Nesse contexto deram-se as vitórias portuguesas do primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques, na batalha de Ourique (1146), e na tomada da cidade de Lisboa (1147), com o auxílio de cruzados vindos do norte europeu.

A queda do Império de Gana (1203)

Até esse avanço almorávida, o Império de Gana conseguira suportar os ataques estrangeiros, tanto de tribos inimigas quanto dos próprios berberes, graças ao seu exército composto de guerreiros soldados, cavaleiros e arqueiros – citados por Al-Bakri em sua obra, como vimos.

No entanto, apesar de uma forte resistência, eles foram derrotados pelos almorávidas e sua capital, Kumbi Saleh, foi tomada e saqueada, por volta de 1076. Com essa vitória, os almorávidas receberam um poderoso reforço, devido às conversões dos negros de Gana. Disso nos informa o cronista Al-Zuhuri: “As gentes do Gana tornaram-se muçulmanas em 1076 sob a influência dos lemtunas” (citado por KI-ZERBO, s/d: 147).

Abu Bakr prosseguia em sua tentativa de unificar as tribos berberes e com elas atacar Gana. No entanto, morreu em uma escaramuça por causa de uma flecha envenenada (1087). Gana reconquistou sua independência, mas após a devastação e saque de sua capital, dez anos antes, o reino negro nunca mais conseguiu recuperar seu antigo poderio. Pelo contrário, as caravanas passaram a se desviar das rotas que privilegiavam o coração de Gana, e os comerciantes passaram a optar por Tombuctu, Gao e Djena.

Os muçulmanos ricos se refugiaram em Walata, especialmente depois do segundo saque da capital, Kumbi, em 1203, por parte do rei sosso Sumaoro Kanté. Paralelo a esse declínio comercial aprofundou-se o processo de islamização das etnias negras, embora sem nunca atingir todas as camadas da população – e, de resto, o islamismo negro era bastante mesclado com práticas animistas.

O Império de Mali (1235-1500)

A queda do Império de Gana abriu um vácuo de poder. A grande questão era: quem tomaria agora o controle das rotas comerciais próximas das fontes auríferas? Os almorávidas fracassaram em sua tentativa de monopolizar o tráfico. O reino que parecia mais próximo de conseguir esse intento era o reino sosso dos Kantés, ao sul de Gana.

Em 1180, surgiu um guerreiro, Diarra Kanté, de um clã de ferreiros animistas adversários do Islão. Feiticeiro famoso e de prestígio, Kanté conseguiu tomar a cidade de Kumbi Saleh, mas sem ocupar as jazidas de ouro, controladas agora por uma tribo de camponeses, os malinqués (“homem de Mali”). Kanté, após dominar o Dyara, o Bakunu e o Bumbu, apoderou-se da região do Buré.


Mapa do Império de Mali (século XIV)

Kanté foi um pequeno interregno entre dois impérios, Gana e Mali. Quanto ao segundo, não se conhecem as origens do reino de Mali (ou Mandinga). Diferentes etnias viviam naquela região. Seus chefes se diziam “caçadores-mágicos”, todos com ritos iniciatórios mais ou menos comuns. Esses clãs estavam unidos pelo chamado “parentesco de brincadeira”, isto é, um curioso direito e dever de fazer troça uns aos outros. O chefe gozava do monopólio das pepitas de ouro. A estrutura social baseava-se em uma grande família que dispunha de um campo comunitário (foroba) próximo à aldeia. Logo um dos herdeiros sosso tomou o título de mansa (ou maghan), isto é, imperador.

Paralelo a esse processo de integração por parte dos sosso acontecia a conversão ao Islamismo. Baramendana foi o primeiro rei a se converter, graças ao pai de Abu Bakr, em 1050. A tradição conta que Baramendana estava desesperado por causa de uma longa seca. Então se dirigiu a um devoto lemtuna que o levou a um monte para passar uma noite rezando. Pela manhã choveu, e o rei mandou destruir os ídolos animistas e se converteu ao Islamismo.


O Império de Mali com seus reinos “vassalos” (século XIV);
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra I. Lisboa:
Publicações Europa-América, s/d, p. 165.

A partir de 1150 se conhece relativamente bem a cronologia dos reis de Mali. Hamana, Djigui Bilali (1175-1200), Mussa Keita, Naré Famaghan (1218-1230) e principalmente Sundjata (ou Mari Djata, o “Leão do Mali”), todos com estórias recheadas de lendas e mitos e transmitidas também pelos griot, os “transmissores de ouvido” de cada etnia que passam de geração para geração as tradições de sua cultura.

Na época de Sundjata, Mali era um reino essencialmente agrícola. Os malinqués desenvolveram a cultura do algodão, do amendoim e da papaia, além da criação de gado. Sundjata instituiu uma associação de trinta clãs (de artesãos, de guerreiros, de homens livres – que, no entanto, eram chamados de “escravos da coletividade”, os ton dyon). Com o crescimento do reino, a categoria dos escravos se multiplicou – recorde que sempre os reinos negros praticaram a escravidão.

Com o filho de Sundjata, Mansa Ulé (1255-1270) e seus sucessores – Abubakar I, Sakura, Abubakar II – até Mansa Mussa (ou Kandu Mussa, 1312-1332), o reino de Mali passou a ser conhecido no mundo ocidental. Em 1324, Mansa Mussa realizou uma peregrinação a Meca, passando pelo Egito e com a intenção de maravilhar os soberanos árabes.


Figura sentada, Mali (século XIII); Observe as feições
alongadas do rosto do personagem, aliás, de todo o corpo.
Pode-se, assim, ter uma noção do tipo físico predominante então,
além de uma contemplação de posturas e gestos corporais.

O Tarikh es Soudan! (1655), de autoria do mouro Es Saadi, nos informa que ele atravessou o deserto passando por Walata e pelo Tuat com 60.000 mil servidores (escravos), evidentemente um exagero – as cifras hoje estão por volta de 500. (HEERS, 1983: 79). Chegou ao Cairo com cerca de duas toneladas de ouro (!), em pó e em pepitas. O cronista Al-Omari (†1349) nos conta:

Quando da minha primeira viagem ao Cairo, ouvi falar da vinda do sultão Mussa (...) E encontrei os habitantes do Cairo todos excitados a contarem as largas despesas que haviam visto fazer às suas gentes.

Este homem espalhou pelo Cairo ondas de generosidade. Não deixou ninguém, oficial da coroa ou titular de qualquer função sultânica, sem receber dele uma quantia em ouro. Que nobre aspecto tinha este sultão! Que dignidade e que lealdade! (citado por KI-ZERBO, s/d: 171).


Mansa Mussa foi tão generoso que, ao sair do Cairo, foi obrigado a pedir um empréstimo a um riquíssimo mercador de Alexandria, para que pudesse manter sua largueza até chegar a Meca...

Sua peregrinação fez o Império de Mali ser conhecido por todo o mundo, e os mapas europeus passaram a citá-lo. Por exemplo, tanto o de Angelo Dulcert Portolano (1339), quanto o Atlas catalão de Abraão Cresques (1375), elaborado para o rei da França Carlos V (1338-1380), o Sábio, trazem nitidamente o nome da capital (Ciutat de Melli), além do rei de Mali, Mansa Mussa, sentado em seu trono e segurando uma pepita de ouro.


Mapa do Norte da África (manuscrito catalão de 1375);
Este mapa catalão do século XIV do Norte da África tem
quatro reis, três africanos: o rei Mansa Musa de Mali
(sentado, com uma gema de ouro na mão direita),
o rei de Organa, o rei da Núbia e o rei da Babilônia.


Detalhe do mapa do Norte da África (manuscrito catalão de 1375);
Os dois números em vermelho marcam dois textos. São eles:
1. “Toda esta parte tem gentes que ocultam a boca; só se vêem
seus olhos. Vivem em tendas e têm caravanas de camelos.
Também possuem animais de cujas peles fazem excelentes escudos”.
2. “Este senhor negro é aquele muito melhor senhor dos negros
de Guiné. Este rei é o mais rico e o mais nobre senhor de toda esta
parte, com abundância de ouro na sua terra” (tradução literal).
Observe que embaixo do globo de ouro que o imperador Mansa Musa
segura na mão direita está a representação da cidade de Tumbuctu.
DAVIDSON, Basil. “Os Impérios Africanos”, História em Revista (1300-1400).
A Era da Calamidade. Rio de Janeiro: Abril Livros / Time-Life, 1992, p. 149.

De regresso para Mali, o imperador trouxe consigo um poeta-arquiteto, Abu Issak, mais conhecido como Es Saheli. Com ele, construiu a grande mesquita de Djinger-ber, em Tumbuctu.

Os sucessores de Mansa Mussa tiveram dificuldades de manter um território tão vasto. Depois de Maghan (1332-1336), até Mussa II (1374-1387), o reino de Mali viu Tumbuctu ser saqueada, além de sucessivos assassinatos palacianos que enfraqueceram o império. Lentamente a hegemonia passava para o reino de Gao, que anexava uma a uma as províncias do leste, além de tomar a cidade de Djena, metrópole comercial.

No final do século XV o Tekrur passou para os domínios do estado wolofo. Houve um curto período confuso entre a hegemonia do Mali e do Gao. Várias etnias foram arrastadas para o movimento dos peules do Bundu, conduzido por Tenguella I (chamado de “o Libertador”). O imperador do Mali tentou até uma aliança com D. João II de Portugal, mas nenhuma das missões portuguesas parece ter chegado a seu destino.

A religião em Mali

Como todos os reinos negros islamizados desse período, a religião em Mali era um misto de várias influências, especialmente as pagãs. Por exemplo, Mussa desconhecia a interdição do Corão de ter mais de quatro mulheres, e os malinqués comiam carnes proibidas pelo Islão. Sacerdotes com máscaras de aves praticavam ritos animistas na corte. Em contrapartida, as festas religiosas islâmicas eram celebradas com grande pompa. As crianças aprendiam o Alcorão, às vezes com duros castigos – eram postas a ferro, por exemplo.

O imperador e sua corte em Mali (descrição de Ibn Batuta)


Ibn Batuta.


O cronista muçulmano Ibn Batuta (1307-1377), um dos maiores viajantes da Idade Média, chegou a Mali quinze anos depois da morte de Mansa Musa, entre os anos 1352-1353. Em um belo texto medieval, esse notável cronista muçulmano nos informa o fausto da corte do imperador de Mali (o texto explicativo em parênteses é de Ricardo da Costa):

O sultão tem uma cúpula elevada, cuja porta se encontra no interior de seu palácio e onde ele se senta com freqüência. Tem do lado das audiências três janelas em arco, de madeira, cobertas de placas de prata, e por baixo delas três outras guarnecidas de lâminas de ouro ou de prata dourada. Estas janelas têm cortinados de lã que são levantados no dia da audiência do sultão na cúpula (...)

Da porta do castelo saem trezentos escravos, uns com arcos na mão, outros com pequenas lanças e escudos. Uns estão sentados, outros de pé. À chegada do rei, três escravos precipitam-se para chamar o seu lugar-tenente. Chegam os comandantes, assim como o pregador, os sábios juristas, que se sentam à esquerda e à direita, diante dos homens de armas. À porta, de pé, o intérprete dougha em grande aparato.

Está soberbamente vestido, em seda fina. O seu turbante está ornado de franjas, que estas gentes sabem fazer admiravelmente. Tem um sabre a tiracolo, cuja bainha é de ouro. Nos pés botas e esporas (...) Tem na mão duas lanças curtas. Uma é de prata, a outra é de ouro. As pontas são de ferro. Os militares, o governador, os pajens ou eunucos e os mesufitas (mercadores berberes e sarakholés) estão sentados no exterior do lugar das audiências, numa longa rua, vasta e com árvores.

Cada comandante tem diante de si os seus homens, com as suas lanças, os seus arcos, os seus tambores, as suas trompas, enfim, com os seus instrumentos de música feitos com caniços e cabaças, em que se bate com baquetas e que dão um som agradável (as trompas eram feitas de marfim das presas de elefantes). Cada um dos comandantes tem sua aljava às costas. Tem o seu arco à mão e anda a cavalo (...) No interior da sala de audiências e nas janelas vê-se um homem de pé. Quem desejar falar ao rei dirige-se primeiro ao dougha. Este fala ao dito personagem que está de pé e este último ao soberano.

Instala-se então um grande estrado com três degraus debaixo de uma árvore. É o pempi. (segundo Al-Omari, o pempi era uma grande cadeira de ébano, parecida com um trono, com as medidas adequadas a uma personagem alta e gorda. De cada lado, uma defesa de elefante a cobri-lo, uma em frente da outra). É coberto de seda e guarnecido de almofadas. Por cima instala-se o guarda-sol, que parece uma cúpula de seda, no alto da qual se vê uma ave do tamanho de um gavião.

O rei sai por uma porta aberta num ângulo do castelo. Tem o seu arco à mão e a aljava às costas. Traz na cabeça um solidéu de ouro, fixado por uma pequena faixa também de ouro, cujas extremidades são pontiagudas como facas e com mais de um palmo de comprimento. Na maioria das vezes, traz uma túnica vermelha e felpuda, feita com tecidos de fabricação européia chamados mothanfas. Diante dele saem os cantores, tendo na mão um kanabir de ouro e de prata (O kanabir era uma calhandra, isto é, uma espécie de cotovia, sabiá-do-campo).

Atrás dele encontram-se cerca de trezentos escravos armados. O soberano caminha lentamente. Aproxima-se devagar e pára mesmo de vez em quando. Chegado ao pempi, deixa de caminhar e olha para os assistentes. Em seguida, sobe lentamente o estrado, como o pregador sobe ao púlpito. Uma vez sentado, tocam-se os tambores e fazem-se soar as trompas e as trombetas. (citado por KI-ZERBO, op. cit.: 176-177.)

Alguns dos pajens escravos do rei eram comprados no Cairo. Era expressamente proibido espirrar em sua presença. Os cortesãos vestiam-se de branco, com tecidos de algodão cultivado na própria terra. As jovens e mulheres escravas, em contrapartida, andavam completamente nuas, para escândalo de Ibn Batuta. Ele ainda estranhou a comida: “Dez dias depois de nossa chegada, comemos um mingau que eles preferem a qualquer outra comida. Na manhã seguinte, estávamos todos doentes”. (citado por DAVIDSON, op. cit.: 150)

A organização política e a vida econômica

No século XVI, tempo de Mahmud Kati, historiador e conselheiro do Askia Mohammed, o império tinha cerca de quatrocentas cidades e vilas. O sistema de governo era descentralizado. Era dividido em províncias, administradas por um dyamani tigui (ou farba). As províncias eram subdivididas em conselhos (kafo) e aldeias (dugu).

A autoridade da aldeia poderia ser bicéfala: um chefe político, outro religioso. O farba recolhia impostos e requisitava tropas, caso necessário. Havia ainda reinos subordinados que reconheciam a hegemonia do imperador, enviando regularmente presentes.

Um dos segredos do Império de Mali foi a maleabilidade de seu sistema político, única lógica possível em uma estrutura sem burocracia, além da tolerância religiosa. Povos tão variados como os tuaregues, os songais, os malinqués e os peules, reconheceram, durante mais de cem anos, a soberania do imperador de Mali. Há um elogio do cronista Ibn Batuta que expressa bem esse sentimento de confiança no funcionamento da estrutura do império:

Não é necessário andar de caravana. A segurança é completa e geral em todo o país (...) O sultão não perdoa a ninguém que se torne culpado de injustiça (...) O viajante, tal como o homem sedentário, não tem a temer os malfeitores, nem os ladrões, nem os que vivem de pilhagem.

Os pretos não confiscam os bens dos homens brancos que venham a morrer nas suas terras, ainda mesmo que se trate de tesouros imensos. Depositam-nos, pelo contrário, em mãos de um homem de confiança dentre os brancos, até que se apresentem aqueles a quem revertam por direito e tomem conta deles.
(citado por KI-ZERBO, op. cit.: 180).


Esse é um belo testemunho da grandeza do Mali, feito pelo maior viajante da época.

O Império Songai (de Gao)


Máxima extensão do Império de Songai (século XVI).

Uma das características mais perenes das sociedades pré-industriais e iletradas (ou semiletradas) é a existência de mitos de origem relacionados à cultura e especialmente ao poder monárquico, além de suas manifestações sociais, todos mitos originários das tradições orais africanas (Controversial Origins). Além disso, os homens das sociedades pré-industriais também tinham uma forma bastante distinta de se relacionar com o mundo (a natureza) e com seus animais.

O caso do Império de Songai (ou de Gao) é um deles. Sua estória começa com o mito do feiticeiro Faran Makan Boté. Ele nasceu de um pai sorko e uma “mãe-fada ligada aos espíritos das águas”. Ao subir o rio, Makan Boté se aliou aos caçadores gows e pescadores sorkos, e passou a exercer as funções de grande sacerdote (kanta) junto a camponeses na região de Tillabery. Assim teriam nascido as energias mágicas do Songai. (KI-ZERBO, op. cit.: 181)

Mas a lenda não pára aqui. Por volta do ano 500, príncipes berberes chegaram às margens da curva do rio Níger e libertaram os pescadores sorkos e camponeses gabibis do terror de um peixe-feiticeiro (seria um descendente de Makan Boté). O autor da façanha teria sido Za Aliamen, e a partir de então sua dinastia reinaria em Kukya até 1335 (no mapa acima, a região assinalada entre Tumbuctu e Gao). Por volta de 1009, Diá Kossoi, décimo-quinto rei da dinastia fundada por Za Aliamen, fixou sua capital em Gao. Ele foi o primeiro rei a se converter ao Islamismo. Já no século XI, Gao rivalizava com a cidade de Kumbi, capital de Mali.
Esse surto de desenvolvimento despertou a cobiça dos malinqués: em 1325, Gao foi conquistada pelo Império de Mali, mas em 1337, dois irmãos e príncipes songaleses – Ali Kolen (ou Golon) e Suleiman Nar – conseguiram se desvencilhar da dominação mali, e Ali Kolen fundou a nova dinastia dos Sis (ou Sonnis).

Suleiman Daman (ou Dandi), décimo-oitavo rei da dinastia Sonni, teria conquistado a cidade de Mesma, mas foi com Sonni Ali (1464-1493), ou Ali Ber (o Grande), ou ainda Dali (o Altíssimo), imperador songai e grande feiticeiro, é que o império se afirmou definitivamente. Sonni Ali conquistou Tumbuctu – então sob o domínio tuaregue –, realizando um verdadeiro massacre (1468), motivo pelo qual os escritores muçulmanos terem-no apresentado como um tirano sanguinário, um ímpio.

Ali também conquistou Djenne (1473), após noventa e nove tentativas dos malinqués de se apoderar de volta da cidade, além do centro de Macina, um pouco mais ao norte. Abriu ainda um canal d’água a oeste do lago Faguibine (ver imagem 42) e ordenou a redação das atas oficiais do reino. Com sua morte, em 1492, seu filho Sonni Bakary assumiu a coroa, mas reinou somente um ano.

Em seguida, houve uma tomada do poder: o filho de Sonni renegou a fé islâmica e um lugar-tenente chamado Mohammed Torodo, assumiu o trono, com o nome de Askia Mohammed, com a ajuda dos ulemás, corpo de estudiosos. (HOURANI, op. cit.: 77)

Como Mussa, Askia também realizou uma luxuosa peregrinação a Meca em 1496, com quinhentos cavaleiros e mil homens a pé. Esse mini-exército de escravos e homens livres levava consigo 300.000 peças de ouro, um terço distribuído em esmolas durante a viagem. No Hedjaz, Askia conseguiu do califa o título de “califa do Sudão”: Khalifatu biladi al-Tekrur.

Do califa Mohammed até Askia Ishak I (1539-1549), o império adquiriu cada vez mais territórios, graças às guerras – e apesar das intrigas e assassinatos políticos palacianos. Por exemplo, no tempo de Askia Mohammed Bunkan (1531-1537), o imperador de Songai tinha uma grande corte com um harém, seus cortesãos recebiam roupas de fazenda e braceletes (mantendo a tradição medieval do soberano vestir, literalmente, seus convivas) e uma orquestra, com novos instrumentos (trombetas e tambores) acompanhava o príncipe em suas viagens. A guarda pessoal do soberano era composta de 1.700 homens. O império então se estendia por mais de dois mil quilômetros, de Teghazza ao país dos mossi (norte a sul), de Agades a Tekrur (leste a oeste).


Mapa do Império de Songai (Gao) e de seus vassalos (século XVI).

Mais bem organizado e estruturado que o império de Mali, Songai estava fundado em torno da pessoa do imperador. No dia de sua entronização, ele recebia um selo, uma espada e um Corão, além de conservar dois atributos mágicos antigos: o tambor e o fogo sagrado (dinturi). A corte obedecia a um rígido protocolo: por exemplo, o cuspe do príncipe não podia cair no chão, sendo recolhido nas mangas de qualquer um dos setecentos homens vestidos de seda que o acompanhavam. Como em Mali, todos os que se aproximavam dele deveriam cobrir a cabeça de pó, com raras exceções (no caso do general do exército, este utilizava farinha).
A formação do exército, dividido por sua vez em vários corpos, reestruturou a sociedade: isento de ir à guerra, o povo trabalhava na terra, na produção artesanal e no comércio. A “burocracia” era muito estratificada (citemos apenas alguns cargos): os altos funcionários (os koy, os fari), ministros e governadores das montanhas (tondi-fari), feiticeiras (que tinham a permissão de dirigirem-se ao imperador pelo nome), o governador da província (gurma-fari) que era o celeiro agrícola do império, o ministro da navegação fluvial (hi-hoy), o chefe dos cobradores de impostos (fari-mondyo), o sacerdote do culto aos antepassados (horé-farima), o inspetor das florestas (sao-farima), o chefe dos pescadores (ho-koy), e ministro encarregado dos homens brancos residentes no império (korey-farima). Todos eram nomeados e demitidos pelo imperador a seu bel-prazer.

A economia songai é hoje calculada com base no número de escravos disponíveis para o trabalho no campo. Por exemplo, uma terra com duzentos escravos deveria produzir cerca de 250 toneladas de arroz por ano (1.000 sunus). O historiador Ki-Zerbo descarta a possibilidade de comparação desse sistema escravocrata com o feudalismo europeu, embora defenda um princípio semelhante para o caso africano: a existência do sistema religioso-simbólico de dádiva e contra-dádiva atenuava a opressão escravocrata. Pois o que interessava ao senhor da terra era ter o maior número de famílias e aldeias de servos, não apenas a exploração econômica (KI-ZERBO, op. cit.: 187-188).

Isso certamente é um caráter análogo ao sistema sócio-econômico vigente cerca de quatrocentos anos antes na Europa medieval. Esse sistema, também chamado de dom e contra-dom, está bem expresso em um documento, escrito pelo historiador soninké de Tumbuctu, Mahmud Kati (Tarikh el-Fettach – a Crônica do Buscador – obra escrita em 1520). Nele, há um interessante e expressivo diálogo em que o imperador Askia Daud concede a liberdade a uma escrava. Ela, por sua vez, sentindo-se presa a ele, declara:

É necessário que eu te traga um tributo para que, com ele, te lembres de mim. Será de duas barras de sabão no princípio de cada ano.

Então o imperador respondeu:

E eu também quero, para obter o perdão do Altíssimo e a Sua indulgência, mandar-te pagar um tributo, que receberás de mim no princípio de cada ano e que será constituído por uma barra inteira de sal e por um grande pano preto. Aceita-o, pelo amor de Deus. (citado por KI-ZERBO, op. cit.: 188)


Página de um manuscrito de Mahmud Kati (1485);
Observe os comentários do próprio autor escritos nas margens.

O ouro e o sal serviam de moeda corrente em Songai, mas a principal moeda eram os cauris, conchas de moluscos utilizadas como moeda de troca até meados do século XIX – e isso do Sudão à China. De qualquer modo, os imperadores Askias procederam a uma unificação de pesos e medidas para evitar fraudes.
As cidades do império eram bastante populosas, e parece que suas gentes se orgulhavam disso. Um trecho da mesma obra de Mahmud Kati ilustra muito bem esse sentimento de auto-estima:

Tendo surgido uma contenda entre as gentes de Gao e as de Cano quanto a saber qual das duas cidades era a mais populosa, frementes de impaciência, jovens de Tombuctu e alguns habitantes de Gao intervieram e, pegando em papel, em tinta e em penas entraram na cidade de Gao e puseram-se a contar os grupos de casas, começando pela primeira habitação a oeste da cidade, e a inscrevê-las uma após a outra, “casa de fulano”, “casa de sicrano”, até chegarem às últimas construções da cidade, do lado leste. A operação levou três dias e contaram-se 7.626 casas, sem incluir as cubatas construídas de palha. (citado por KI-ZERBO, op. cit.: 189)

Esse certamente é um dos primeiros censos conhecidos em África, talvez mesmo um dos primeiros do fim da Idade Média européia. Com ele, os historiadores puderam calcular uma população citadina de cerca de 100.000 habitantes.

Tumbuctu renasce na pena de Al-Hasan (1483-1554)


Mesquita songai de Tumbuctu (séc. XVI).

Todas essas cidades eram grandes centros de estudos, especialmente dos textos religiosos e de Direito (notadamente a jurisprudência). Em sua obra Descrição da África (1526), o granadino Al Hasan, chamado de Leão, o Africano (al-Hasan ibn Muhammad al Wazzân az-Zayâtî, 1483-1554), nos dá preciosas e claras informações sobre a cidade de Tumbuctu (os comentários em parênteses são de Ricardo da Costa):

O reino recebeu recentemente esse nome, depois que uma cidade foi construída por um rei chamado Mansa Suleyman, no ano 610 da Hégira (1232), próxima doze milhas de uma filial do rio Níger (Mansa Suleiman reinou nos anos 1336-1359. Na verdade, a cidade de Tumbuctu foi provavelmente fundada no século XI pelos tuaregues, e antes foi capital do reino de Mali em 1324).

As casas de Tombuctu são choupanas feitas de pau-a-pique de argila, cobertas com telhados de palha. No centro da cidade há um templo construído de pedra e de almofariz por um arquiteto de nome Granata. (Ishak es Sahili el-Gharnati, trazido para Tumbuctu por Mansa Suleiman)

Além do templo, há um grande palácio também construído pelo mesmo arquiteto, onde o rei vive. As lojas dos artesãos, dos comerciantes, e, especialmente, as dos tecelões de pano de algodão, são muito numerosas. As telas são importadas da Europa para Tombuctu, carregadas por comerciantes da Barbária. (Por caravanas de camelos que passavam pelo deserto do Saara vindas da África do Norte)

As mulheres da cidade mantêm o costume de vendar seus rostos, com exceção dos escravos, que vendem todos os gêneros alimentícios. Os habitantes são tão ricos, especialmente os estrangeiros que se estabeleceram no país, que o rei atual deu duas de suas filhas a dois irmãos, ambos homens de negócios, pois era ciente de suas riquezas. (O autor se refere a Omar ben Mohammed Naddi, que não era de fato o rei, mas um representante do rei de Songai)

Há muitos poços que contêm água doce em Tumbuctu. Além disso, quando o rio Níger está cheio, canais levam a água para a cidade. Grãos e animais são abundantes, de modo que o consumo de leite e de manteiga é considerável. Contudo, o fornecimento de sal é fraco, porque ele é levado daqui para Tegaza, que fica cerca de 500 milhas de Tumbuctu.

Eu mesmo estava na cidade no momento em que uma carga de sal foi vendida por oito ducados. O rei tem um rico tesouro rico de moedas e pepitas de ouro. Uma dessas pepitas pesa 970 libras. (Como vimos, os escritores muçulmanos mencionam freqüentemente as fabulosas pepitas de ouro africanas, mas atualmente há a tendência de se considerar os tamanhos descritos por eles um exagero)

A corte real é magnífica e muito bem organizada. Quando o rei vai de uma cidade a outra com as gentes de sua corte, monta um camelo e os cavalos são conduzidos manualmente por servos (escravos). Se a luta é necessária, os servos montam os camelos e todos os soldados montam nas costas dos cavalos. Quando alguém desejar falar com o rei, deve ajoelhar-se diante dele e curvar-se ao chão; mas isto é exigido somente daqueles que nunca falaram nem com o rei, nem com seus embaixadores.

O rei tem aproximadamente 3.000 cavaleiros e uma infinidade de soldados de infantaria, todos armados com arcos feitos de funcho selvagem, e com o qual disparam setas envenenadas. (Funcho é uma planta aromática e ramosa, de grande importância medicinal)

Este rei faz a guerra somente contra os inimigos vizinhos e contra aqueles que não aceitam lhe pagar tributo. Quando obtêm uma vitória, ele vende todos os inimigos, inclusive as crianças, no mercado em Tumbuctu.

Os pobres cavalos nascem pequenos neste país. Os comerciantes usam-nos para suas viagens e os cortesãos para mover-se na cidade. Os bons cavalos vêem da Barbária. Chegam em uma caravana e, dez ou doze dias mais tarde, são conduzidos ao soberano, que, caso goste, os examina e paga apropriadamente por eles.

O rei é um inimigo declarado dos judeus. Ele não permitirá que nenhum deles viva na cidade. Caso ouça que um comerciante da Barbária anda ou faz negócio com eles, o rei confisca seus bens. Há numerosos juízes em Tumbuctu, professores e sacerdotes, todos bem nomeados pelo rei, que honra muito as letras. Muitos livros escritos à mão e importados da Barbária são vendidos. Há mais lucro nesse comércio do que em toda a mercadoria restante.

Ao invés de dinheiro, são usadas pepitas puras de ouro como moeda de troca. Para compras pequenas, escudos de cauris trazidos da Pérsia; quatrocentos cauris igualam um ducado. Seis ducados e dois terços correspondem a uma onça romana de ouro. (Como vimos, os cauris eram conchas de moluscos utilizadas como moeda, desde o Sudão até a China; um ducado de ouro sudanês deveria pesar cerca de 15 gramas)

Os povos do Tumbuctu são de natureza calma. Têm um costume quase regular de caminhar à noite pela cidade (com exceção daqueles que vendem ouro), entre dez e uma hora da madrugada, tocando instrumentos musicais e dançando. Os cidadãos têm muitos escravos a seu serviço, tanto homens quanto mulheres.

A cidade corre muito perigo de incêndios. Quando eu estava lá em minha segunda viagem (provavelmente em 1512), metade da cidade queimou no espaço de cinco horas. Com medo de o vento violento levar o fogo para a outra metade da cidade e também queimá-la, os habitantes começaram a tirar seus pertences.Não há nenhum jardim ou pomar na área que cerca Tumbuctu. (Leo Africanus: Description of Timbuktu, from The Description of Africa [1526])

A educação no Império de Songai

Como em todo o mundo urbano islâmico, a educação era muito incentivada pelos potentados locais. Tumbuctu e as demais cidades do Império de Songai tinham muitos professores e uma antiga tradição de centros de estudos. Em Tumbuctu, por exemplo, a universidade de Sankore, organizada em torno de três mesquitas (Jingaray Ber, Sidi Yahya e Sankore), abrigava já no século XII cerca de 25.000 estudantes, isso em uma população de cerca de 100.00 pessoas, como vimos.


Universidade de Sankore, construída por volta do século IX.

Doutores atravessavam o deserto para ministrar seus cursos ou assistir a alguma disciplina de um colega. O cádi (juiz) de Tumbuctu, Mahmud, inspirava reverência dos Askias e de seus ministros - suas funções eram distintas das do governador, pois não tinha deveres políticos ou financeiros, cabendo-lhe somente decidir conflitos e tomar decisões à luz do sistema islâmico de leis (HOURANI, op. cit.: 56)

Muitas vezes o cádi censurava abertamente o imperador nos conselhos, quando se sentavam ao lado dos generais. Por exemplo, novamente segundo Mahmud Kati em sua obra Tarikh el-Fettach (1520) – e se acreditarmos na sinceridade de seu relato - ele teria dito pessoalmente ao Askia Mohammed, de quem era conselheiro:

Esqueceste ou finges esquecer o dia em que me foste procurar em casa e me pegaste pelo pé e pelas roupas, dizendo-me “Venho colocar-me sob a tua proteção e confiar-te a minha pessoa para que me livres do fogo do Inferno”? Foi por esse motivo que pus fora os teus enviados. (citado por KI-ZERBO, op. cit.: 190)

Como se vê – e Ki-Zerbo destaca muito bem isso em sua obra – a soberba universitária tem longa tradição mundo afora, e aqui se misturava ao clericalismo vigente no século XVI.

Desse celeiro de estudiosos de Songai, o mais ilustre sem dúvida foi Ahmed Baba (c. 1556-1620). Nascido em Arauane (dez dias de marcha de Tumbuctu a Tuat), Baba teria escrito setecentas obras (!), dentre elas um dicionário dos sábios do rito malekita e um tratado sobre as populações do Sudão ocidental. Seus estudos abrangiam praticamente todo o campo dos estudos islâmicos da época: Língua Árabe, Retórica, Exegese corânica e Jurisprudência. Sua biblioteca tinha cerca de 1.600 obras.

Mahmud Kati escreveu com entusiasmo sobre esse ambiente cultural efervescente no Império de Songai, e com ele termino minha narrativa da expansão muçulmana na África e o surgimento dos impérios negros ao sul do Saara:

Naquele tempo, Tombuctu era sem igual entre as cidades do país dos Negros pela solidez das instituições, pelas liberdades políticas, pela pureza dos costumes, pela segurança das pessoas e dos bens, pela clemência e compaixão para com os pobres e os estrangeiros, pela cortesia em relação aos estudantes e aos homens de ciência e pela assistência prestada a estes últimos. (citado por KI-ZERBO, op. cit.: 191)

Assim, até o século XVI, o Império de Songai, como o restante da África negra, conheceu um grande desenvolvimento e expansão. No entanto, a partir de então, os estados muçulmanos passariam a um expansionismo brutal (o primeiro deles o reino de Marrocos, muito interessado nas minas de sal do outro lado do deserto). Somado a isso, a Europa passou a conhecer a África e utilizá-la para seus fins igualmente expansionistas. “É o começo de uma aventura sombria”, afirma Ki-Zerbo. (KI-ZERBO, op. cit.: 251)


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