sexta-feira, 16 de julho de 2010

A fé que corta montanhas

Na desolada cidade de Lalibela, na Etiópia, 11 igrejas cristãs foram esculpidas na rocha há 800 anos. Fomos ao coração da África para contar esse verdadeiro mistério da fé, intacto até hoje


A entrada de uma das igrejas de Lalibela que ajudam
a manter o cristianismo na Etiópia já há oito séculos.

Vista da janela do hotel, ao amanhecer, a cena parece medieval. Na encosta da montanha, as igrejas de Lalibela, na Etiópia, não se deixam ver. É possível distinguir apenas os peregrinos, vestidos de branco, lentamente subindo a ladeira para, de repente, desaparecerem no interior da rocha dura e escura. Tudo sem barulho, quase em câmera lenta.

As igrejas de Lalibela impressionam. Invisíveis ao viajante desatento, foram escavadas num maciço rochoso há 800 anos. Bem perto umas das outras, são interligadas por valas e túneis cortados fundo na montanha. Dedicado ao culto cristão ortodoxo, por séculos a religião oficial do país, o santuário reúne 11 templos, alguns com mais de uma nave e abóbadas de 10 metros de altura.

A despeito de seu raríssimo conjunto arquitetônico, reconhecido pela Unesco como Patrimônio Histórico da Humanidade, Lalibela é um daqueles lugares de que poucos ouviram falar e menos ainda o conhecem. Por muito tempo permaneceu inacessível, a não ser aos peregrinos mais decididos. A cidade está numa área montanhosa, a 2 630 metros de altitude. Até recentemente, as estradas que levavam a Lalibela eram intransitáveis, a luz elétrica era desconhecida e ainda hoje não existe banco nem farmácia. O mundo, ali, anda em outro compasso.

O calendário é o juliano, criado por Júlio César em 45 a.C. para unificar as datas na vastidão do Império Romano. A adoção do calendário gregoriano, em 1582, não chegou ali.

Raro país da África nunca colonizado por metrópoles européias (a ocupação italiana durante a Segunda Guerra Mundial durou menos de dez anos), até a década de 70 a Etiópia era governada por reis e imperadores. Foi no século 12, durante o reinado do cristão copta Lalibela, de quem a cidade herdou o nome, que se ergueram suas igrejas. Diz a lenda, e diz também o guia que inevitavelmente acompanha o visitante morro acima e escada abaixo, que, antes de ser consagrado rei, Lalibela esteve exilado em Jerusalém, onde teria se deslumbrado com a beleza dos templos locais. E, assim segue a lenda, os anjos o ajudariam, anos depois, a esculpir sua adoração na rocha.

Um pouco de história. A conexão entre o povo da Etiópia e o de Jerusalém é antiga. A dinastia dos imperadores etíopes, encerrada com Haile Selassie (1892-1975), era conhecida como salomônica. Eles acreditavam descender diretamente do rei Salomão. Existem mais de 30 referências à Etiópia no Velho Testamento. A bela rainha de Sabá, etíope, seduziu o rei Salomão em Jerusalém e de lá voltou grávida do futuro rei Menelik, um dos mais poderosos governantes da história do país africano. O mesmo Menelik que, em uma de suas visitas ao pai, o rei Salomão, decidiu levar a Arca da Aliança para... a Etiópia. Diz-se que ainda hoje a arca original está escondida em algum lugar por ali. Onde exatamente? Uma pegadinha clássica a turistas mediante o pagamento de pequena soma - que pode aumentar de acordo com a cara de palerma do aventureiro. Não diga que não avisamos.

Voltando às igrejas submersas. No regresso de seu exílio, tendo se consagrado rei, Lalibela fez com que sua "Nova Jerusalém" fosse construída abaixo do nível do solo por pura estratégia. Assim, quando os mercadores muçulmanos aparecessem pela região à procura de novos escravos, os cristãos etíopes e seus templos tinham maior chance de passar desapercebidos - só quem caísse literalmente na armadilha, e com sorte se recuperasse do tombo, poderia encontrar o caminho para o esconderijo.

As construções são peculiares. No começo eram trincheiras de 3 metros de largura por 10 metros de profundidade, escavadas em torno de um maciço de pedra. Numa das faces do bloco que surgia, uma porta era aberta e, a partir dela, as naves cresciam no interior da rocha. Grande volume de matéria vulcânica foi retirado, dando lugar a diferentes ambientes. Tudo é de pedra, claro, as paredes, o chão, as colunas e o teto sem emenda. É como se um daqueles castelos de areia feitos na Praia de Copacabana fosse levantado em tamanho natural para que um homem pudesse passear por dentro.

Ao entrar no recinto, o visitante é convidado a tirar o sapato. Seja por causa da umidade, seja pelo excesso de tapetes que recobrem o chão ou pela falta de cuidado, o lugar é dominado por pulgas - se sua presença de espírito o tiver levado a guardar aquelas meias descartáveis distribuídas pela companhia aérea no vôo intercontinental, elas poderão ser usadas como proteção.

Cada uma das 11 igrejas tem um monge encarregado dos serviços religiosos - Lalibela é ainda hoje um centro de peregrinação. Na parte oposta à entrada, sempre protegida por uma cortina desgastada pelo tempo, está a arca onde é guardada a cruz. Se o dia não é de movimento e o monge tiver boa vontade, ele poderá mostrá-la a você. Ela é de ouro, bem, talvez, e foi carregada pelo rei Lalibela durante as batalhas e celebrações que marcaram seu reinado de glória. Se a história do monge é verdadeira? Ninguém
sabe ao certo, assim como até hoje nenhum arqueólogo desvendou o mistério da construção de suas igrejas - engenheiros estimam que pelos menos 40 mil homens teriam trabalhado freneticamente, dia e noite, durante anos a fio, para escavar os templos na rocha vulcânica.

Em Lalibela, enquanto os fiéis entoam seus cânticos e os peregrinos perseguem sua história, o passado ainda não encontrou o presente.

Fonte: Revista Viagem

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