sábado, 12 de dezembro de 2009

Um trono para dois faraós

Exemplo único na história das dinastias egípcias, o governo conjunto foi resultado de um corajoso golpe de Estado: a rainha Hatchepsut, viúva de Tutmés II e regente do futuro rei, decidiu autoproclamar-se soberana

Era uma vez um rei, Tutmés II, que morreu após três anos de governo. Seu herdeiro, ainda menino, carregava o mesmo nome. Ele não era filho da grande esposa real Hatchepsut, mas de uma secundária, sem relevância na sucessão do trono. Por isso, durante sua minoridade, quem assumiu o poder foi a rainha. Primeiro ela se proclamou regente. Em seguida, extrapolou esse papel e decidiu se tornar soberana integral, dando início a um período em que dois monarcas ocuparam o mesmo trono. O que parece conto de fadas é um episódio real: trata-se da única co-regência conhecida na história do Egito antigo.


Para garantir o trono, Hatchepsut adotou atributos
da realeza, como a barba postiça, a tanga curta,
o cetro e a cauda de touro, símbolo de potência.
(Esfinge de Hatchepsut, escultura de calcário
pintado, XVIII dinastia, Deir el-Bahari, Egito)

Tutmés III e Hatchepsut eram representantes da XVIII dinastia, fundada cerca de 70 anos antes por Amósis, com a ajuda da rainha Ahhotep, sua mãe. Mas eles não eram seus descendentes em linha direta: sabe-se que o filho de Amósis, Amenófis I, não deixou herdeiro homem e entregou as rédeas do país a um tal Tutmés, de origem desconhecida. Supõe-se que ele pertencia a um ramo da família real com a qual Amósis tinha ligação, ou que era um simples dignitário e soldado que teve seu mérito premiado pelo soberano.

Tutmés I tinha duas mulheres: Ahmés, a grande esposa real, e Mutneferet, a esposa secundária. Não se sabe ao certo quando ele se casou com uma e com outra, mas, com base em algumas informações, é possível determinar a ordem geral dos acontecimentos. Primeiro, é fato que Mutneferet deu à luz três meninos. O mais velho, Imeneminet, aparece como general em um monumento do quarto ano de governo de Tutmés I, retirado do sítio arqueológico de Guiza. Ora, esse título não é dado a um garotinho, o que significa que Imeneminet já era adulto no início do governo de seu pai. Portanto, Mutneferet certamente se casou com Tutmés I antes de sua ascensão ao trono.

Além disso, com exceção do rei, a poligamia não era uma prática comum na sociedade egípcia e tampouco o hábito de esposar parentes próximos. Portanto, é provável que Tutmés I tenha se unido à Ahmés, sua irmã, apenas após sua coroação. Como ele exerceu o poder durante 12 anos e Hatchepsut era filha de Ahmés, ela não tinha mais do que essa idade quando ele faleceu.

Após a morte do pai, o filho caçula de Mutneferet, Tutmés II, assumiu o trono – seus irmãos haviam falecido anteriormente. Como rezava a tradição enraizada na XVIII dinastia, ele casou-se com a meia-irmã Hatchepsut e juntos tiveram uma filha, Neferure. A esposa secundária, Ísis, deu à luz Tutmés III, que imediatamente se tornou herdeiro do governo.

Tutmés II morreu aproximadamente três anos depois de chegar ao poder. Filha de rei, irmã e esposa de rei, madrasta do rei, Hatchepsut era a mais indicada para exercer a regência durante a minoridade de Tutmés III.


Em Carnaque, a soberana proclamou-se filha de Amon-Rá, que
teria lhe confiado a realeza com o consentimento de todos os deuses.

Uma mulher na condução do reino não era surpreendente. Desde o fim da XVII dinastia e começo da XVIII, esse fato se repetiu ao menos duas vezes: a rainha Ahhotep governou no lugar do filho Amósis e Ahmés Nefertari exerceu a regência pelo filho Amenófis I.

Hatchepsut contava com o apoio e a experiência dos homens da corte, como Ametju, vizir do Alto Egito, e Senenmut, provavelmente um ex-soldado que se distinguira a serviço de Tutmés I e de Tutmés II. Este foi um de seus administradores e mentor da pequena princesa Neferure.

CULTO A TUTMÉS III

Co-regente, Hatchepsut tomava as decisões em nome do reinante, Tutmés III. Assim, no ano 2, ordenou trabalhos no templo de Semna, na Núbia. Porém, nas paredes dessa edificação, quem cultua as divindades é Tutmés III. Hatchepsut aparece somente uma vez, e como esposa real. No ano 5, no Sinai, dedicaram-se duas estelas à deusa Hátor, ambas atribuídas a Tutmés III. Do reinado de Ramsés II, o Papiro de Turim recorda a nomeação de Useramon como vizir do Alto Egito no lugar de seu pai, Ametju, e menciona apenas Tutmés III.


Resquícios da co-regência: na antiga cidade de Tebas, a entrada
para o templo de Hatchepsut, no sítio arqueológico de Deir el-Bahari.

Ao que tudo indica, Hatchepsut mudou de posição social no sétimo ano do reinado de Tutmés III. A essa data remonta a primeira menção segura de Maatkare, o nome que adotou como soberana. A regente unificou as coroas reais e adotou os atributos da realeza: cinco títulos e cinco nomes, cetros, barba postiça, tanga curta e cauda de touro, o símbolo da potência. Assim, ela se fez rei.

Em seu templo de Deir el-Bahari, assim como no de Amon-Rá, em Carnaque, a soberana invocou duas fontes para fundamentar bem seu acesso ao poder: em primeiro lugar, proclamou-se filha do deus Amon-Rá, o chefe do panteão egípcio, que lhe teria confiado a realeza com o consentimento de todos os deuses do país. A seguir, afirmou que seu pai terrestre, Tutmés I, a escolheu para sucedê-lo e o fez diante dos homens mais importantes do Egito. Assim, riscou do mapa a existência do marido Tutmés II e instalou-se no trono ao lado de Tutmés III. Não tinha a pretensão de substituí-lo. Tanto que ela não adotou um calendário próprio – os egípcios não mediam o tempo como nós, a partir de um ponto de referência fixo: a contagem recomeçava de zero no início de cada reinado. E os fatos continuaram sendo datados pela ascensão de Tutmés III.

Não há um só monumento construído em seu governo – a não ser, talvez, uma pequena capela parcialmente destruída em Carnaque – em que o rei esteja ausente. Ele aparece atrás dela na cena do retorno da expedição de Punt, o grande feito de Hatchepsut, e figura no templo que ela construiu em Deir el-Bahari. Não foi, portanto, mantido na sombra pela tia, que não descuidou de nada ao preparar o sobrinho para o futuro ofício de rei. Prova disto é que, com a morte da soberana, ele assumiu o comando do reino e do exército, combatendo na Palestina.

Homem culto, de espírito curioso e aberto, possuía qualidades que não se desenvolviam espontaneamente, como mostra seu interesse pela fauna e flora, seu gosto pela literatura e sua preocupação com a saúde dos humildes. Hatchepsut também incumbiu-se de casar o co-regente. Há registros da existência de uma mulher, Satiah, e de um filho, Amenemhat, ambos mencionados no início do reinado autônomo de Tutmés III, no templo de Akhmenu edificado pelo rei em Carnaque.


2ª Parte -->

Um comentário:

  1. Gostei do seu blog. Ousei copiar duas imagens para o meu. Parabéns pelo elo trabalho.
    Abraços
    Suely Monteiro
    www.suelymonteiro.blogspot.com

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