sábado, 12 de dezembro de 2009

Um trono para dois faraós

As últimas menções à rainha remontam ao ano 20, de modo que são muito plausíveis os 22 anos de reinado a ela atribuídos pelo sacerdote Maneton, que viveu no século III a.C. Tutmés III organizou seu funeral, como nos mostra o pouco material poupado pelos saqueadores. A morte da rainha não provocou nenhuma ruptura com o passado: a equipe dirigente permaneceu, com exceção dos dignitários, como Senenmut.


Hieróglifos no templo de Carnaque.

Subitamente, nos anos 42 e 43 – como permitem deduzir as inscrições –, Tutmés III mandou retirar todos os nomes e imagens que faziam referência à soberana. No alto do obelisco da rainha, atualmente tombado nas proximidades do lago sagrado de Carnaque, ordenou a destruição do retrato da tia no terceiro e no quarto registros a partir do cume.

Por que Tutmés III esperou 20 anos para apagar os vestígios de Hatchepsut? Ao contrário do que acreditam os egiptólogos, que situam o início do veto à imagem da rainha no dia seguinte ao seu falecimento, não se tratou de vingança contra uma madrasta má. O faraó, senhor do maior território dominado pelo Egito até então, que proporcionou ao país uma prosperidade sem igual, tampouco receava a ameaça de um hipotético rival vindo de outro ramo da família real, como sugerem alguns. O que aconteceu então?

BALANÇO DO REINADO

A data coincide com o fim das campanhas militares que há vinte anos Tutmés III empreendia na Síria e na Palestina. Para ele, estava na hora de fazer o balanço de seu reinado. E de resolver a questão da co-regência com a tia. Tutmés III atacou prioritariamente o sistema de legitimação estabelecido por Hatchepsut em Carnaque e em Deir el-Bahari. Por melhores que fossem seus motivos para se apossar da realeza, ela não deixava de ser uma usurpadora. Não tinha nenhum direito ao trono, uma vez que já existia um soberano.

No sarcófago e no vaso canópico que restam na tumba da rainha, assim como nos raros objetos funerários que escaparam à pilhagem, seu nome está intacto. No segredo da tumba, Tutmés III manteve os elementos que, supostamente, lhe garantiam vida eterna. Isso prova que o rei não visava a pessoa da tia, a quem tanto devia, e tampouco a regente, que cumpriu seu papel. Atacou sim a figura da rainha, que indevidamente ascendeu ao trono no sétimo ano de seu governo. Afinal, estava em jogo a própria concepção da realeza faraônica. E o destino que Tutmés III deu à memória da co-regência não convida ninguém a considerar essa prática uma instituição solidamente estabelecida no Egito antigo.

CRONOLOGIA

XVIII dinastia

1543-1518 a.C. – Amósis
1517-1497 a.C. – Amenófis I
1496-1483 a.C. – Tutmés I
1483-1480 a.C. – Tutmés II
1479-1458 a.C. – Hatchepsut
1479-1426 a.C. – Tutmés III
1426-1400 a.C. – Amenófis II
1400-1390 a.C. – Tutmés IV
1390-1353 a.C. – Amenófis III
1353-1336 a.C. – Akhenaton
1332-1322 a.C. – Tutancâmon
1323-1319 a.C. – Aye
1319-1392 a.C. – Horumheb

XIX dinastia

1292-1279 a.C. – Seti I
1279-1213 a.C. – Ramsés II

CONSTRUTORES E GUERREIROS

XVIII dinastia (1570 a 1320 a.C.) é lembrada por grandes feitos. O primeiro, e talvez o maior deles, foi libertar o Egito do domínio de quase 200 anos imposto pelos hicsos. Vindos da Ásia, eles invadiram o reino pelo delta do rio Nilo.





A campanha de retomada teve início em 1570 a.C. por Kamose e seu irmão Amósis, futuro governante. Desde então, esses dois guerreiros e seus sucessores foram responsáveis por guerras que estenderam o território egípcio para o norte, até o rio Eufrates, e para o sul, até a quarta catarata do Nilo, na Núbia. O império que se ergueu levou novas rotas comerciais para a região do Oriente Médio e trouxe ao Egito o espólio resultante de saques em terras estrangeiras. Seus governantes ficaram conhecidos como grandes combatentes, mas também como construtores: nos reinados de Tutmés I e II inúmeras edificações foram erguidas e Tutmés III seguiu a tradição guerreira.

Quando Amenófis II assumiu o trono, o reino atingiu o auge de sua estabilidade. Ele estabeleceu uma relação diplomática com o poderoso reino de Mitanni, localizado nas regiões que hoje compõem o norte da Síria e o sul da Turquia.

DESCOBERTA POR UM DENTE

Hatchepsut, Nefertite e Cleópatra foram as três grandes damas do Egito. A beleza e o carisma as distinguiram através dos milênios, entusiasmando os espíritos cultos. Hatchepsut continua sendo a mais fascinante e misteriosa dessas mulheres. De inteligência sutil e vontade de ferro, conseguiu o que as outras grandes esposas reais nunca pensaram nem se atreveram a fazer: inaugurar a única verdadeira co-regência conhecida do Egito.


A descoberta da múmia de Hatchepsut, considerada o maior
feito desde a localização da tumba de Tutancâmon, em 1922,
foi oficialmente anunciada em 27 de junho de 2007.

Sua tumba no Vale dos Reis, perto de Tebas, foi explorada por Howard Carter, descobridor também do suntuoso túmulo de Tutancâmon em 1903. Quando a encontraram, estava vazia, sem o corpo. Zahi Hawass, diretor do Conselho Superior das Antigüidades Egípcias, empreendeu uma pesquisa científico-policial em todo o país para localizar a múmia da soberana. Para tanto, lançou-se à busca dela entre as múmias já exumadas. O trabalho foi árduo: eram numerosíssimos os despojos reais não identificados – eles haviam sido escondidos e deslocados pelos grandes sacerdotes para evitar que os saqueadores os profanassem.

Acompanhado de uma equipe de pesquisadores, ele iniciou a investigação visitando uma pequena tumba de 40 m2 localizada em frente à KV20, a chamada KV60. Essa sepultura aleatória, descoberta em 1903 também por Carter, continha dez múmias da XVIII dinastia. Ao desobstruir a entrada, Zahi Hawass deparou com uma urna de madeira trabalhada que continha os despojos de uma mulher obesa, a única que continuava no lugar. “Quando a vi, eu compreendi imediatamente que ela pertencera à realeza”, relatou com entusiasmo. A múmia correspondia perfeitamente ao que ele procurava: bem conservada, de porte altivo e, sobretudo, com o braço esquerdo dobrado no peito, à maneira dos cadáveres reais. Imediatamente mandou sua equipe levá-la ao Museu do Cairo para estudá-la mais detidamente. Seria Hatchepsut?

Havia também um pequeno cadáver, posteriormente identificado como o da ama-de-leite real Sitre In. Na época, Hawass também a considerava uma possível candidata a Hatchepsut. Uma vez resgatadas as duas primeiras, a equipe de pesquisadores recordou-se da existência de duas outras múmias reais não identificadas encontradas num esconderijo do templo de Deir el-Bahari (DB320). O lugar, vasculhado no século XIX pelo Departamento de Antigüidades Egípcias, ocultava mais de uma dúzia de múmias de faraós de diversas dinastias, entre as quais a de Amósis I, Tutmés II e III e Ramsés II. Lá estavam os dois despojos batizados “Mulher desconhecida A” e “Mulher desconhecida B”. Eles vinham acompanhados de um vaso canópico lacrado, no qual estava gravado o nome de Hatchepsut. A primeira mulher, apelidada “a agonizante”, apresentava um orifício na nuca e o rosto um tanto deformado pela boca escancarada. Sua expressão de sofrimento levava a crer que ela tinha sido assassinada. Depositados no Museu do Cairo, os dois cadáveres estavam abandonados e esquecidos. A equipe tardou várias horas para localizá-los na própria instituição.

Com os quatro corpos reunidos, finalmente foi possível comparar e analisar as múmias. A equipe científica contava com um radiologista e um especialista em escâneres que realizaram pela primeira vez a reconstituição em 3D de cada uma delas. Cada “retrato” escaneado foi confrontado com o “retrato de família” recomposto de acordo com os dados recuperados nos despojos de Tutmés I, Tutmés II e Tutmés III. Já nas primeiras impressões, eliminaram os dois cadáveres do esconderijo DB320. A seguir, para confirmar os vínculos de parentesco com a linhagem dos Tutmés, os especialistas efetuaram análises de DNA. As amostras de osso extraídas do quadril e do fêmur das múmias foram comparadas com as da avó de Hatchepsut, Ahmés Nefertari. O resultado tardaria meses a chegar. A pesquisa ficaria paralisada e os elementos de que Zahi Hawass dispunha eram insuficientes para decidir entre as duas múmias. Foi então que o egiptólogo recorreu ao vaso funerário lacrado e com o selo da rainha. Entre os órgãos embalsamados na urna não havia nada de extraordinário, salvo um pedacinho de dente molar. O dentista Galal el-Beheri, da Universidade do Cairo, realizou inúmeros testes e comparações. Hawass tirou a sorte grande: o pedaço de dente encontrado no vaso correspondia ao que restava do molar no maxilar da mulher gorda da tumba KV60. Hatchepsut foi enfim identificada.

.:: Revista História Viva


<--1ª Parte

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