quinta-feira, 24 de junho de 2010

A expansão árabe na África



Existem muitos fatores que contribuíram para a incrível expansão árabe do século VII que partiu da Península Arábica em direção ao Magreb. A baixa produtividade do solo da Península e o desejo de ter uma terra cultivável, somado a uma população em crescimento; o enfraquecimentos dos reinos de Bizâncio e da Pérsia, que se encontravam devastados pelas guerras e tinham suas províncias em franco processo de declínio (o imperador bizantino Heráclio [610-641] assistiu impotente à perda das províncias que havia recentemente conquistado) (ANGOLD, 2002: 50); possíveis afinidades inter-étnicas (a Síria e a Mesopotâmia tinham tribos árabes), e até o uso de camelos nas batalhas em campo aberto por parte dos exércitos muçulmanos. (HOURANI, 1994: 40)

A expansão militar

Tudo isso pode ter contribuído para as sucessivas, rápidas e espantosas vitórias da espada do Islã, mas definitivamente o motivo maior e mais poderoso nas mentes de então foi a unidade política e principalmente espiritual promovida e realizada por Maomé (570-632).

Logo após a morte do Profeta, em 634 a Península arábica foi definitivamente unificada e os primeiros exércitos islâmicos foram enviados para o exterior. Seus sucessores, os primeiros califas rashidun (os “califas corretamente orientados”) (HOURANI, 1994: 459) – a palavra califa significa “representante” – foram os líderes militares que organizaram as bases pelas quais o império pôde crescer.


A Expansão do Islã; Atlas Histórico. Barcelona: Editorial Marin, 1992, p. 44.

As tropas árabes que realizaram essa expansão tanto para o leste quanto para o oeste eram disciplinadas e coesas. Definitivamente não eram bárbaras. Conta a tradição que Abu Bakr (623-624), o primeiro califa, sogro de Maomé, teria dito às suas tropas:

Sede justos, sede valentes; morrei antes de render-vos; sede piedosos; não mateis nem velhos, nem mulheres, nem crianças; não destruais árvores frutíferas, cereais ou gado. Mantende vossa palavra, mesmo aos vossos inimigos; não molesteis as pessoas religiosas que vivem retiradas do mundo, mas compeli o resto do mundo a se tornar muçulmano ou nos pagar tributo. Se eles recusarem estes termos, matai-os. (citado em DURANT, s/d: 171).

Assim, enquanto Khalid ibn al-Walid, general supremo de Abu Bakr, conquistava o Iraque e Damasco ao norte, o comandante Amr ibn al-As, outro recém-convertido e veterano das guerras sírias, partiu de Gaza, tomou Pelúsio, Mênfis e, finalmente, Alexandria, após um sítio de vinte e três meses, em 641. O trigo do Egito era muito necessário para Medina, e o porto de Alexandria oferecia um ponto seguro para a expansão marítima islâmica. (PREVITÉ-ORTON, 1976: 337)
Os cristãos monofisistas do Egito (que acreditavam em uma só natureza do Cristo), cansados das perseguições religiosas de Bizâncio, receberam os muçulmanos de braços abertos – de maneira semelhante como as comunidades judaicas na Península Ibérica fariam em 711. A propósito, a história que Amr ibn al-As teria ordenado a destruição da Biblioteca de Alexandria é considerada hoje uma versão completamente destituída de fundamento. (LEWIS, 1990: 63)
Amr administrou muito bem o Egito. Apesar de ter governado com base em duros tributos cobrados da população local, ele reparou canais e, a partir de seu acampamento, construiu em 642 uma nova capital, de nome al-Fustat (que significa “a tenda”): mais tarde ela se chamaria Cairo.


Representação de Abu Bakr.

De posse desse novo potentado, e preocupados com um possível ataque bizantino vindo do ocidente, a partir de 647 os muçulmanos decidiram prosseguir em seu assalto ao norte da África. Seguindo a costa africana, partiram então para o oeste, liderados por Ibn Sad, emir do Egito. Um poderoso e organizado exército marchou através do deserto até a cidade de Barka (Barca, atualmente na Líbia), tomando-a de assalto em 643-644. Dali avançou praticamente sem nenhuma resistência até as proximidades de Cartago, já na Tripolitânia.

Ao sul da Túnis moderna (na Tunísia), o comandante Okba ibn Nafi construiu um acampamento na areia, em 670, fundando assim uma das maiores cidades do Islã bem no coração da África romana, Kairuan (Karouan ou Cairuão) – o “lugar do descanso”, para sustar as contra-ofensivas dos bizantinos (observe a característica do surgimento da cidade islâmica nessa expansão militar: ela, via de regra, teve origem em um acampamento militar). Esse avanço até a Tripolitânia e a fundação de Kairuan foram muito importantes para a expansão do Islã. Dali, Okba fez incursões e massacres contra as tribos berberes, que se refugiaram nas montanhas do Atlas.

Os berberes eram tribos nativas que viviam espalhadas por toda a África do Norte. Segundo o cronista muçulmano Ibn Khaldun (c. 1332-1395), os berberes eram quase totalmente nômades:

...gentes que vivem em tendas e que viajam no lombo do camelo, e se instalam nas alturas das montanhas (...) No deserto, a maioria da população mantém suas genealogias, porque, de todos os laços que servem para vincular um povo, o de sangue é o mais próximo e de maior força (...)

Os povos que experimentam a influência desse sentimento preferem sempre a vida do deserto à das cidades... (IBN JALDÚN, 1997: 633).



Berberes tunisinos.

Em 681, Okba atingiu o Atlântico, mas os berberes se esqueceram de sua hostilidade secular contra aos romanos e decidiram combater esse novo invasor. Sob as ordens do príncipe Koceila (Kossaila ou Kossayla), uma parte dos berberes derrotou Okba ibn Nafi (683), saqueou Kairuan e fez o exército árabe retroceder de volta para Barka. Contudo, outra parte dos berberes abraçou o Islamismo, fato que enfraqueceu o exército de Koceila.

Este, recuando para Barka em 689, foi surpreendido e massacrado por uma força bizantina (PIRENNE, 1970: 136), e o exército árabe, por sua vez, perseguido pelas forças berberes chefiadas por uma misteriosa e lendária rainha-sacerdotisa zenata de nome Kahina (ou Kahena), foi obrigado a retornar derrotado de volta ao Egito – os zenatas ou zanagas eram uma etnia berbere originária do sul do Marrocos (KI-ZERBO, s/d: 129).

Hasan, governador do Egito, decidiu contra-atacar: retomou a ofensiva, reconstruiu Kairuan e apoderou-se definitivamente de Cartago, em 698. Os cartagineses fugiram e a cidade antiga foi substituída por uma nova, ao fundo do gloso: Túnis. Seu porto, Goulette, tornou-se a partir de então uma das grandes bases navais islâmicas do Mediterrâneo.

Sim, a expansão islâmica também abrangia os mares: desde o califa Moawiah (660) os muçulmanos dispunham de uma frota, e com ela também alargaram seu poder e invadiram as ilhas de Chipre, Rodes, Creta e Sicília, além de transformarem o porto de Cizico (Cyzicus), na Ásia Menor, em uma importante base naval islâmica de onde passaram a assediar Constantinopla (PIRENNE, 1970: 134-135).


A expansão islâmica por águas bizantinas.

Assim, além do avanço para o oeste pelo norte da África – e simultaneamente a ele – os muçulmanos se apoderam gradativamente de posições marítimas chaves no Mediterrâneo. A resistência berbere foi desfeita e a rainha-sacerdotisa Kahina teve a cabeça cortada e enviada como troféu ao califa no Egito.


Estátua em homenagem à Rainha Zenata Kahina.


A fragmentação do Norte da África em potentados

No final do século VII, os muçulmanos concretizaram definitivamente sua expansão no norte da África. Na região mais setentrional, outro comandante árabe, Mousa ibn Noçayr submeteu o Magreb (Marrocos) e impôs definitivamente o Islamismo às tribos berberes. Com isso, a África ficou dividida em três províncias:

1) O Egito, com sua capital em al-Fustat (próxima de Cairo);
2) Ifriqiya (Tunísia), com sua capital em Kairuan e
3) Magreb (Marrocos), com sua capital em Fez.

Durante cerca de cem anos, os emires dessas três províncias reconheceram os califas do Oriente como seus soberanos. No entanto, devido às longas distâncias e as dificuldades naturais de comunicação – que só aumentaram com a transferência da capital do Império para Bagdá, essas províncias gradativamente tornaram-se reinos independentes no século IX, cada um com uma dinastia. Foram elas:

1) Dinastia tulunida (868-905), no Egito e na Síria;
2) Dinastia aglábida (800-909), em Kairuan (dominando a Tunísia, a região oriental da Argélia e a Sicília) e
3) Dinastia idrísida (789-926) no Magreb.

No Egito, a dinastia tulunida durou apenas duas gerações de monarcas. Fundada por Ahmad ibn-Tulun (868-884), filho de um escravo turco, com ela, o Egito passou por um rápido renascimento cultural, tanto nas artes quanto no saber. Ibn Tulun construiu uma nova capital (Qatai, subúrbio de al-Fustat), palácios, banhos públicos, um hospital, um aqueduto ainda de pé e a grande mesquita Ibn Tulun, hoje uma homenagem do tempo a seu governo.


Mesquita Ibn Tulun, no Egito.

No entanto, seu filho Khumarawayh (ou Khumavaraih, 884-895) transferiu a energia que herdou do pai totalmente para a luxúria: tributou pesadamente seu povo para revestir seu palácio de ouro e construir uma piscina de mercúrio, onde sua cama com almofadas (também de ouro) e sempre cheia com seu harém pudesse flutuar... Apesar disso, Khumarawayh foi reconhecido como governador do Egito, da Síria e da Mesopotâmia do Norte, casando sua filha com o califa al-Mutadid-Mutadid. O poder dos tulunidas cai com seu filho Harun (896-904); outra dinastia turca, os ikshididas (935-969) tomou-lhes o poder. (Islamic Architecture – Tulunids)

Na Ifriqiya (Tunísia), em 800, Ibrahim ibn al-Aghlab fundou a dinastia aglábida, que governou a região até 909. Embora fossem tecnicamente submissos aos califas abássidas, os aglábidas eram independentes. Eles foram responsáveis pela construção da grande mesquita e suas muralhas, e transformaram sua capital em um importante centro cultural, onde as ciências religiosas e a poesia puderam florescer.

Os aglábidas criaram também uma marinha e desenvolveram técnicas agrícolas, de irrigação e de arquitetura, além das artes. Grande foi o florescimento das atividades intelectuais. Nesse período, destacam-se Imam Suhnun, Assad ibn al-Furat (no Direito) (SOUSA, 1986), Yahia ibn Sallam (na Exegese do Alcorão) e Ibn al-Jazzar (na Medicina). (Os Aglábidas) Os aglábidas também conquistaram e dominaram a Sicília (827-878); dali, em 846, um exército aglábida conseguiu atacar e saquear Roma. Essa ilha permaneceu sob o domínio muçulmano mais de cem anos e só foi reconquistada pelos cristãos em 1091.


Ribat de Susa, na Tunísia.

Trata-se de um clássico exemplo arquitetônico da fortaleza ribat. O núcleo dessa construção data do período 770-96 e seu último estágio dos anos 821-22. Sua construção é atribuída ao aglábida Ziyadat Allah. Consiste em um cerco fortificado com uma entrada e torres nos cantos e no meio das paredes. O pátio é cercado por dois níveis de muros. O lado do sul do segundo assoalho é ocupado por uma mesquita com um mihrab no centro (o mihrab em uma mesquita é o nicho decorado que indica a direção [qibla] de Meca. MIQUEL, 1971: 556). Para a questão do ribat, ver adiante nosso item VI.


Parte interna do Ribat de Susa, na Tunísia.

No entanto, uma força religiosa tomaria Ifriqiya de assalto: os ismaelitas. Por volta de 905, Abu Abdala surgiu naquele reino pregando uma doutrina que se propagaria por todo o mundo árabe, a Doutrina Ismaelita dos Sete Imãs. Com a adesão dos berberes, ele conseguiu depor a dinastia aglábida e saudar Obeidala ibn Muhammad como al-Mahdi (ou Madi), o “líder justo”, aquele que viria destruir a tirania e estabelecer a justiça. Contudo, assim que chegou ao poder, uma das primeiras medidas de Obeidala foi ordenar a morte de Abu Abdala.

O sucesso da tomada do poder pelos ismaelitas fez surgir uma nova e importante dinastia: os fatímidas (se diziam “fatímidas” porque se consideravam descendentes de Fátima, filha do Profeta). Lá mesmo na Tunísia, os exércitos fatímidas se prepararam para a conquista do Egito, primeiro passo para se chegar ao império do Oriente. (LEWIS, 2003: 43)

Aglábidas e fatímidas devolveram à África do Norte um pouco da prosperidade dos tempos da Roma imperial. No século IX, os muçulmanos abriram novas rotas, desenvolveram o comércio tanto com o Islã Oriental quanto com a Espanha e as regiões transaarianas (como veremos a seguir), e trouxeram novas técnicas para a arte do couro, das tinturas e dos perfumes. Ao se expandirem até o Egito, tomando-o dos turcos ikshididas, os fatímidas unificaram todo o norte da África. Transferiram-se então para a cidade de Qahira (“A vitoriosa”, isto é, Cairo) ao nordeste de Qatai, chegando posteriormente a ter o controle sobre toda a Arábia e a Síria.


Maior extensão do califado fatímida (909-1171).

Os fatímidas tornaram-se rapidamente os reis mais ricos de seu tempo. No entanto, a liberdade cultural e religiosa dos primeiros tempos deixava pouco a pouco de existir: com o califa al-Haquim (996-1021), uma série de perseguições contra judeus e muçulmanos teve início – até mesmo a Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, foi destruída – fato que deu início à pregação das cruzadas. Apesar disso, a dinastia ainda floresceu culturalmente com o longo reinado de Mustansir (1036-1094), filho de uma escrava sudanesa.

Mustansir construiu um belo pavilhão e viveu uma vida de música, vinho e conforto. Ele disse: “Isto é mais agradável que contemplar a Pedra Preta, ouvir o zumbido dos muezins (o encarregado do apelo à oração) e beber água impura”. (citado por DURANT, s/d: 258) Após sua morte, o império se fragmentou em várias facções (berberes, sudanesas e turcas). Ifriqiya e Marrocos já haviam se separado, a Palestina se rebelou e a Síria foi perdida.


Moeda de ouro cunhada no reinado
de Mustansir (1048-1049)


Natureza e força da civilização islâmica no Norte da África

Todas aquelas três cortes dos reinos africanos – do Cairo, de Kairuan e de Fez – protegeram e desenvolveram as artes – a música, a filosofia, a poesia, a arquitetura, a pintura e as artes menores (azulejos, estampas em tecidos, vasos de cristal, etc.). Em Kairuan, em 670 foi erguida a maravilhosa mesquita de Sidi Oqba, restaurada sete vezes. Seus claustros ainda hoje são sustentados por colunas coríntias das ruínas de Cartago. A riqueza da arte de Sidi Oqba tornou Kairuan a quarta cidade santa do Islã – chamada de “um dos quatro portões do Paraíso”.


Mesquita de Sidi Okba, em Kairuan.

Com um púlpito entalhado, o mais antigo minarete quadrado e maciço do mundo (o minarete é a torre da mesquita), e seus interiores rodeados de pilastras coríntias iluminadas com velas, a mesquita de Sidi Okba é um marco da força da arquitetura e da fé islâmica (DURANT, s/d: 258), e artisticamente contrasta maravilhosamente com a imensidão e o silêncio do deserto – observe que um dos pilares da contemplação estética é justamente observar a inserção da obra arquitetônica no espaço natural em que ela foi construída, e essa interação deve ser levada em conta quando da fruição artística.


Mesquita de Sidi Okba, em Kairuan. Interiores.

Ainda em relação às artes desse período na África do Norte, é importante destacar que os muçulmanos desenvolveram com intensa paixão e enorme paciência as chamadas “artes menores”. Azulejos envernizados, louças de barro, vidros, vasos de cristal, caixas ricamente decoradas com incrustações de marfim, osso ou madrepérola (tanto na madeira quanto no metal), tinteiros, tudo com motivos geométricos. Enfim, todas as manifestações da criatividade artística humana brotaram esplendorosamente na África do Norte islâmica entre os séculos VII-XI.

O ensino e as letras

É sabido que o mundo muçulmano na Idade Média estimulou muito a educação e o estudo das letras. No final do século X, a biblioteca de Cairo já era uma das maiores do mundo conhecido. O Islão patrocinava muito o saber: por exemplo, em 988 Iacub Qilis convenceu o califa egípcio Aziz a custear a educação para estudantes na mesquita de el-Azhar.
Era o início do ensino público – logo seguido pelas universidades européias (embora ali os estudantes custeassem os gastos). O estudo sistemático em el-Azhar atraiu universitários de todo o mundo muçulmano, processo que antecedeu em um século o movimento universitário na Europa.

O califa al-Haquim criou no Cairo uma instituição chamada Casa de Sabedoria (Dar al-Ilm), que abrigava o ensino da teologia xiita dos ismaelitas, da astronomia e da medicina. Haquim também doou sua coleção de manuscritos à Casa da Sabedoria “para que todo o mundo possa vir para ler, transcrever e se instruir”. (MANGUEL, 1997: 47) Ali ainda havia um observatório astronômico, onde trabalhou o maior dos astrônomos muçulmanos, o egípcio Abu’l Hasan ibn Yunus (†1009) (RONAN, 2001: 100-101).


Esfera de Ibn Yunus.

E de todos os nomes que brilharam dentre os doutores do Islã nesse período, o mais conhecido é o de Al-Hazin. Matemático muçulmano nascido por volta de 965 em Basra, ele tornou-se famoso por ter escrito um importante tratado de ótica (Kitab al-Manazir). O primeiro a perceber a capacidade aumentativa do vidro parece ter sido Sêneca († 65 d. C.), observando objetos através de bolas de vidro cheias d’água.

Mas foi Al-Hazin, em seu Livro de Ótica, quem deu um passo importante e definitivo ao trabalhar a ação dos “corpos lenticulares”. (FRADA) Seu problema básico fora encontrar a imagem de um ponto brilhante quando refletido fora de um círculo. Isso envolvia conseguir encontrar um ponto preciso (A) na circunferência de um círculo.


Estudo ótico de Al-Hazim.

Al-Hazin ainda observou a forma de meia-lua da imagem do Sol durante os eclipses na parede oposta a uma pequena cavidade feita nas folhas de janelas: é a primeira menção conhecida da câmara-escura, base da fotografia. Até o tempo de Kepler e da Vinci, todos os estudos europeus sobre a luz basearam-se na obra de al-Hazin (DURANT, s/d: 261).

Por fim, o efeito mais duradouro da expansão do Islã no Norte da África foi o quase completo desaparecimento do cristianismo. É bastante provável que os habitantes latinos das cidades tenham emigrado para a Sicília e Espanha. Todas as populações, especialmente os berberes, adotaram com tal entusiasmo o Islã que expandirem-no para o sul do Saara, como veremos a seguir. Assim, o Mediterrâneo deixou de ser uma rota pacífica e romana como o era no mundo antigo para se transformar em um mar de fronteira bélica de religiões e civilizações opostas. (PREVITÉ-ORTON, 1976: 337)

Civilizações ao sul do Saara: a Terra dos Maqzara e o reino de Tekrur


Feira livre em Atar (cidade a oeste da Mauritânia).

No extremo oeste da África setentrional, entre os atuais países de Mali e da Mauritânia, ao longo do rio Níger até mais a oeste, na escarpa do Tagant, com limite ao sul nos rios Senegal e Bakoy, desenvolveram-se as primeiras civilizações negras conhecidas: os Maqzara, o reino de Tekrur, e os famosos Impérios de Gana (Wagadu), ou o “Império do Ouro”, como ficou sendo chamado, e o de Songai (ou de Gao). Essas culturas negras que giravam em torno do Baixo Senegal (nome de toda essa região) foram o resultado de um desenvolvimento autóctone bastante recuado (e de natureza pagão-animista), iniciado provavelmente na era cristã, aliado ao avanço berbere-islâmico em direção ao sul do Saara no século IX.

Essa expansão berbere havia se dirigido tanto no leste ao sul do Egito, para obter o controle das minas de ouro do Sudão, quanto no oeste ao sul de Magreb, e aqui no Baixo Senegal a expansão basicamente tivera como motivação o desejo de dominar as rotas cada vez mais desenvolvidas dos tráficos de ouro, de sal e de escravos, este último um tráfico que nunca parou de crescer desde então até meados do século XIX (KI-ZERBO, s/d: 130). O tráfico de escravos – escravos que eram utilizados em sua maior parte no serviço doméstico ou como soldados – acontecia tanto no sentido do sul para o norte do Saara quanto o inverso (DAVIDSON, 1992: 146).

Apesar das dificuldades naturais de se atravessar o deserto, muitas caravanas de muçulmanos cruzavam o Saara a oeste para comerciarem escravos, sal, cavalos e metais (ouro e cobre) com as populações negras. Os berberes também compravam dos negros marfim, peles de animais, plumas de avestruz e sementes de cola (com cafeína); em troca, traziam cobre, espadas decoradas de Damasco, louças e talheres finos.

Partindo-se do Magreb (de Fez, mais a oeste, ou mesmo de Trípoli), os viajantes islâmicos utilizavam quatro rotas conhecidas através do deserto para chegar a quatro importantes pontos de comércio ao sul. Da esquerda para a direita:

1) De Awdaghost e Tekrur (na Mauritânia atual) para Tindouf, até Marrakech, Fez e Túnis;
2) De Tombuctu (no Mali) também para Fez e Túnis, mas passando por Taouden;
3) De Gao (também no Mali) para Trípoli, passando por Ghadames;
4) De Agadez, mais ao centro, no Níger, também para Trípoli, passando por Ghadames ou por Murzuk.


Mapa das rotas pré-coloniais da África Setentrional.

Graças a essas regulares rotas de comércio transaarianas estabelecidas pelos berberes islamizados é que se tem notícia escrita das civilizações negras ao sul do Saara. Um viajante e geógrafo muçulmano chamado al-Bakri (século XI) escreveu a principal fonte para essa região, um livro chamado Descrição da África (de 1087). Abu Ubayd al-Bakri, filólogo, poeta, geógrafo, historiador e erudito religioso, viveu em Qurtuba (Córdoba), Al Mariyya (Almeria) e Ishbiliya (Sevilha), onde morreu em 1094. Ele ficou conhecido por seus comentários a várias obras, principalmente o Sharth Kitav al amthal de Abu Ubayd al-Qasim ibn Sallam, e o Al 'Ali fi sharh al amáli, de al-Qali. A intenção desses comentários muito difundidos na Idade Média era esclarecer os casos em que o significado desejado por um conhecido autor não estava claro. Então o comentarista explicava as expressões pouco comuns e fazia as necessárias correções para os novos e futuros leitores. (Poetas andalusíes sevillanos)

Embora al-Bakri, da mesma forma que Tácito em sua obra Germânia (no século I), nunca tenha ido pessoalmente à região que descreve em sua obra, ele conversou com viajantes e comerciantes, além de consultar obras de geógrafos muçulmanos, e pôde assim fazer um precioso registro de segunda mão sobre aquelas culturas negras. (KI-ZERBO, s/d: 131-141; Al-Bakri’s online guide to Ghana Empire)


Mapa das culturas negras de Tekrur, Awdaghost e
Gana; KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra I.
Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 137.

Assim, tomando como base esse depoimento muçulmano (e de outros, como veremos), sabemos que, já a partir do século IX, uma confederação de tribos berberes sob o comando de Tilutan (836-837) – os lemtunas, os mesufas e os djoddalas – conseguiram impor sua autoridade sobre vários grupos negros e negro-berberes instalados ao redor de um povoamento chamado Awdaghost, que ficava bem no centro da região do Baixo Senegal. Todas essas culturas próximas a Awdaghost tinham uma defesa natural que as protegiam de ataques, as escarpas do Tagant, que formam um grande semicírculo natural protetor naquela região.

Outro escritor islâmico, Al-Idrisi (Abu al-Idrisi, muçulmano de Ceuta, no Marrocos, educado em Córdoba, na Espanha) (RONAN, 2001: 113) nos informa que o nome desse reino era País de Qamnuriya (Mauritânia) ou Terra do Maqzara dos Negros (Ard Maqzarati es Soudan). Bem no centro da rota do sal, de Buré ao sul até Teghazza, esse reino teria tanto no sul quanto no norte um povoamento concentrado em um cinturão de cidades: ao sul, Awlil, Sila, Tekrur, Daw e Barissa; ao norte Qamnuriya e Nighira. No entanto, na época da chegada dos berberes islâmicos, as rotas com o sul (Senegal) teriam desaparecido, restando o contato e comércio com o norte islâmico.

Um pouco à esquerda do reino de Maqzara, havia outro importante reino negro, na trilha da famosa “rota saariana do ouro” (que passava por Walata e Sidjilmasa até Fez): era o reino do Tekrur. No século IX, esse reino era governado por uma dinastia peule vinda de Hodh: eram os Dia Ogo.


Tipo de construção na área rural da Mauritânia.

O Tekrur, segundo Al-Idrisi, era um reino com um soberano independente, que possuía tropas e muitos escravos, e era muito famoso por seu senso de justiça. Com um comércio ativo, o reino de Tekrur importava lã, cobre e pérolas do Marrocos e exportava ouro e escravos para o norte berbere-muçulmano.

A escravidão

O tráfico negreiro não foi uma invenção diabólica da Europa. Foi o Islã, desde muito cedo em contato com a África Negra através dos países situados entre Níger e Darfur e de seus centros mercantis da África Oriental, o primeiro a praticar em grande escala o tráfico negreiro (...)

O comércio de homens foi um fato geral e conhecido de todas as humanidades primitivas. O Islã, civilização escravista por excelência, não inventou, tampouco, nem a escravidão nem o comércio de escravos (os grifos são nossos. BRAUDEL, 1989: 138).


Aqui faço um breve parêntese para a questão da escravidão negra. Muitos séculos antes da chegada dos brancos europeus à África, as tribos, reinos e impérios negros africanos praticavam largamente o escravismo, da mesma forma os berberes e demais etnias muçulmanas. Imaginar os portugueses, castelhanos e italianos lançando seus marinheiros em caçadas aos negros no coração das florestas africanas não resiste ao menor exame histórico.

Pelo contrário, os europeus seiscentistas tinham verdadeiro pavor de deixar o litoral ou mesmo desembarcar de seus navios e avançar para longe da costa e capturar escravos. Estes eram trazidos pelos próprios africanos, que tinham grandes mercados espalhados pelo interior do continente, abastecidos por guerras entre as tribos, ou mesmo puro seqüestro aleatório. Isso pode ser facilmente comprovado, por exemplo, com a descrição do império de Mali feita pelo cronista muçulmano Ibn Batuta (1307-1377), um dos maiores viajantes da Idade Média, e o depoimento de al-Hasan (1483-1554) sobre Tumbuctu, capital do império de Songai, documentos que exporemos mais adiante.

Ademais, havia tribos africanas que praticavam sacrifícios humanos, naturalmente de escravos. Às vezes, para interromper a chuva, mulheres negras (e escravas) eram crucificadas.


Antigo forte muçulmano de escravos, na Tanzânia.

Ao converter meia África, o Islamismo contribuiu muito para estimular ainda mais a escravidão, pois praticou-a desde cedo: antes mesmo de Maomé, já no século VI, mercadores árabes freqüentavam todos os portos da costa oriental da África, trocando cereais, carnes e peixes secos com tribos bantus por escravos. As populações negras não-muçulmanas também consideravam a escravidão um fato absolutamente normal (como veremos, normalmente os reis africanos tinham centenas de escravos como soldados – e em suas guardas pessoais).


Mercado de escravos no Yêmen (1236-1237); Manuscrito árabe
n. 5847, fol. 105, Maqâma 34, Biblioteca nacional da França,
Divisão oriental do Departamento de Manuscritos.

Por exemplo, nas minas de sal-gema de Targhaza (exatamente na rota do Tekrur em direção a Marrakech), milhares de negros morriam para prover uma caravana de camelos cada vez maior de ano a ano – por volta de 1200 eram entre cinco e seis mil camelos que transportavam esse sal para o sul.

Outro conhecido exemplo é o rei de Mali, Mansa Mussa (1312-1332): negro e muçulmano, quando chegou ao Cairo em peregrinação a Meca em 1324, trouxe consigo quinhentos escravos, também negros, cada um com uma bola de ouro na mão (tratarei mais adiante de Mansa Mussa) (HEERS, 1983: 79; DE BONI, 2003: 317-333).

Por fim, a base alimentar do povo do reino do Tekrur era o milhete (um tipo de milho pequeno), peixe e leite (ROSENBERGER, 1998: 338-358). Vestiam lã (os mais poderosos) e algodão (a maior parte da população). Seu primeiro rei a converter-se ao Islamismo foi War Jabi Ndiaye. Com ele, todos os súditos também se converteram (Jabi Ndiaye morreu em 1040) (KI-ZERBO, s/d: 133).

O Império de Gana (300-1075)


Império de Gana.

O reino de Gana é chamado assim por causa do título de seus soberanos. Era também chamado de Ugadu (país dos rebanhos). Nessa época, o clima era bastante úmido, o que favorecia a criação de gado e a agricultura. Por volta do século IX, viviam na região do Hodh e do Auker pastores de origem berbere e cultivadores negros sedentários que, com o passar do tempo, se mesclaram. Em 876, outro cronista muçulmano, Iacub, escreveu: “O rei de Gana é um grande rei. No seu território encontram-se minas de ouro e ele tem sob sua dominação um grande número de reinos” (citado por KI-ZERBO, s/d: 135).

Gana renasce na descrição de Al-Bakri

Em 970 o viajante muçulmano Ibn Hawkal viajou de Bagdá até a margem do rio Níger, e não hesitou em dizer do imperador de Gana: “É o mais rico do mundo por causa do ouro” (citado por KI-ZERBO, s/d: 133). Um século depois, outro cronista, Al-Bakri nos dá informações mais precisas, como disse, em sua obra Descrição da África (de 1087). É esse texto, essa fonte que a partir de agora abrimos espaço para descrever o reino de Gana. (Al-Bakri’s online guide to Ghana Empire)

O reino de Gana

Al-Bakri nos conta:

O reino de Gana está povoado pelos povos de Soninke, que chamam sua terra de Wagadugu ou Wagadu. O nome Gana é o título do rei que governa aquele império. O Estado de Soninke é forte, e seu rei controla 200.000 soldados, 40.000 dos quais arqueiros que protegem as rotas de comércio de Gana.

O poder do rei de Gana provém do monopólio da enorme quantidade de ouro produzida em seu reino. Esta riqueza permite aos de Soninke construir e manter enormes cidades, além de uma capital com uma população estimada entre 15.000 e 20.000 habitantes. Soninke também usa sua riqueza para desenvolver outras atividades econômicas, tais como a tecelagem, a ferraria e a produção agrícola.

A capital de Gana

A capital de Gana é chamada Kumbi Saleh. A cidade consiste na reunião de duas cidades que se unem em uma planície, a maior delas habitada por muçulmanos e com doze mesquitas (ver imagem 28). Kumbi Saleh possui também um grande número de juízes e de homens instruídos. Ao redor de ambas as cidades há poços de água doce e potável, e próximos a eles, terras cultivadas com vegetais.

A cidade habitada pelo rei está a seis milhas da outra cidade (muçulmana) e é chamada de Al-Ghana. A área entre as duas cidades é coberta com casas feitas de pedra e de madeira. O rei tem um palácio e choças de formato cônico, cercadas por paredes. Na cidade do rei, não muito longe da corte de justiça real, há uma mesquita. Os muçulmanos que vêem em missões ao rei podem rezar ali. Há ainda uma grande avenida, que cruza a cidade de leste a oeste.


Figura eqüestre de terracota, Mali (séc. XIII-XV?)


O rei de Gana

O rei adorna a si mesmo como se fosse uma mulher, usando colares ao redor do pescoço e braceletes em seus antebraços. Quando se senta diante do povo, fica sobre uma elevação decorada com ouro e se veste com um turbante de pano fino. A corte de apelação fica em um pavilhão abobadado, com dez cavalos estacionados e cobertos com um tecido bordado com ouro. Atrás do rei ficam dez pajens segurando escudos e espadas, ambas decoradas com ouro.

À sua direita ficam os filhos dos vassalos do país do rei, vestindo esplêndidas roupas e com os cabelos trançados com ouro. O governador da cidade senta-se na terra diante do rei e os ministros ficam do mesmo modo, sentados ao redor. Na porta do pavilhão estão cães de excelente pedigree e que dificilmente saem do lugar de onde o rei está, pois estão ali para protegê-lo. Os cães usam ao redor de seus pescoços colares de ouro e de prata cheios de sinos com o mesmo metal.

A audiência é anunciada pela batida em um longo cilindro oco que se chama daba. Quando os povos que professam a mesma religião se aproximam do rei, caem de joelhos e polvilham suas cabeças com pó, uma forma de mostrar respeito por ele. Quanto aos muçulmanos, eles cumprimentam-no somente batendo suas mãos. (Al-Bakri’s online guide to Ghana Empire).


Vila de Songo, no Mali, com uma pequena mesquita
ao centro; Os tipos de “casas cônicas” descritas por
Al-Bakri em sua obra ainda podem ser vistas no Mali,
como mostra a fotografia acima da Vila de Songo, no Mali.


A economia e a justiça em Gana

O rei cobra o imposto de um dinar de ouro para cada carga de asno com sal que entra em seu país, e dois dinares de ouro para cada carga de sal que sai. (dinar era uma moeda de ouro criada pelos califas muçulmanos; seu equivalente em peso era o mitkal - 4,722 gramas).

Os impostos são cobrados também pelo cobre e qualquer outra mercadoria que entra e sai do Império. O melhor ouro do país vem de Ghiaru, uma cidade distante da capital 18 dias de viagem. Todas as peças de ouro que são nativas e encontradas nas minas do Império pertencem ao soberano, embora ele deixe o povo ter um pouco de ouro em pó, isso certamente com o conhecimento de todos. Sem essa precaução, o ouro não só se tornaria abundante como praticamente perderia seu valor.

Quando um homem é acusado de negar um crime, um chefe pega um barril fino de madeira ácida e amarga de provar e coloca nela um pouco de água. Depois disso, ele dá essa bebida ao réu para que a beba. Se o homem vomita, sua inocência é reconhecida e ele é felicitado. Se não vomita e a bebida permanece em seu estômago, a acusação é aceita e justificada.


Mesquita de Bandiagra, Mali; Bandiagra: quatro mulheres
da etnia dos dogons, com seus trajes típicos, em frente
à mesquita, tendo à frente um sorridente homem com uma
coroa e vestido com um tecido cor de vinho. Todos estão
descalços. Observe o belo contraste entre as cores dos
personagens e o tom amarelo-tijolo do cenário.


A religião em Gana

Al-Bakri nos conta:

Ao redor da cidade do rei há choupanas abobadadas e bosques onde vivem os feiticeiros, homens encarregados de seus cultos religiosos. Ali se encontram também os ídolos e os túmulos dos reis. Estes bosques são guardados: ninguém pode entrar ou descobrir seus recipientes. As prisões dos vivos também estão ali, e se alguém é aprisionado lá, nunca mais se ouve falar dele.

Quando o rei morre, constroem uma enorme abóbada de madeira no lugar do enterro. Então trazem-no em uma cama levemente coberta e colocam-no dentro da abóbada. A seu lado colocam seus ornamentos, suas armas, e os recipientes que ele usava para comer e beber. A serpente é a guardiã do Estado e vive em uma caverna que lhe é devotada. Quando o rei morre, seus possíveis sucessores se reúnem em uma assembléia, e a serpente é trazida para picar um deles com seu focinho. Essa pessoa é então chamada para ser o novo rei.


A descrição de Al-Bakri é sucinta e clara. A população de Gana, rodeada de hortas, pepinos, palmeirais e figueiras, vivia assim em uma espécie de oásis protetor na fronteira sul do deserto. Como disse acima, a mesquita de Djenne tornava a região um importante centro islâmico, com um comércio bastante próspero. Al-Bakri nos diz a respeito: “A criação de carneiros e de bois é aí particularmente próspera. Por um simples mitkal (moeda de ouro equivalente ao dinar – 4,722 gramas) podem-se comprar pelo menos dez carneiros. Encontra-se muito mel, que vem do país dos Negros. As gentes vivem desafogadamente e possuem muitos bens” (citado em KI-ZERBO, s/d: 136).

O escritor muçulmano não se esquece da cozinha e a graça das moças da terra: “Encontramos também jovens com uma linda cara, tez clara, corpo esbelto, seios direitos, cintura fina, ombros largos, ancas abundantes, sexo estreito, etc” (citado em KI-ZERBO, s/d: 136).

Embora devamos ter uma prudência em relação aos textos dos cronistas muçulmanos, pois, como disse, alguns deles foram redigidos com base em narrativas orais e consulta a obras, não no local, a obra de Al-Bakri nos sugere um grau de islamização ainda bastante fraco das populações negras (André Miquel é ainda mais rigoroso: “No Ghâna, de resto directamente atingido pelo choque almorávida, tanto o povo como o rei ter-se-iam mantido pagãos, sòmente sendo tocados pelo Islame os intérpretes e certos funcionários...”. MIQUEL, 1971: 216).

Tanto o rei, que ainda era escolhido com base em tradições animistas – a picada da deusa-serpente –, quanto uma parte do povo teriam ainda se mantidos pagãos (embora se deva observar que a cidade com maior densidade demográfica descrita por Al-Bakri era a muçulmana, com suas doze mesquitas). Segundo Ki-Zerbo, esse era o culto do deus-serpente do Uagadu (Uagadu-Bida), antepassado-totem dos Cissés: “Segundo a lenda, saía da toca no dia da entronização dos reis e recebia em sacrifício anualmente a mais bela rapariga da terra. Um dia, diz-se, Maghan, vendo a sua noiva, a jovem virgem Sai, entregue à serpente, matou o réptil. Mas o pitão era o deus da fecundidade. Teria sido o seu desaparecimento que desencadeara a desertificação do país” (KI-ZERBO, s/d: 138). Deve-se ainda atentar para o fato de o Império ter, segundo as estimativas dos especialistas, cerca de um milhão de habitantes (DAVIDSON, 1992: 147).

De resto, Al-Bakri parece ter delimitado bastante bem a separação entre as duas culturas religiosas naquele momento: um bom exemplo disso é a saudação das pessoas quando se aproximavam do rei. Os animistas jogavam terra em sua cabeça em sinal de respeito, os muçulmanos batiam palmas, notável e marcante diferença que mostra o ainda baixo grau de penetração islâmica junto ao rei e à corte de Gana.

Em suma, sabemos da existência desse rico império negro e escravocrata graças aos viajantes islâmicos e à presença muçulmana na região, com seu grupo letrado, mas que ainda não se misturara efetivamente com a população autóctone, nem conseguira penetrar na casa real, ainda de forte tradição animista.

Para finalizar, como eram fisicamente os homens de Gana? Outro cronista islâmico que viveu duzentos anos depois de al-Bakri, o historiador al-Umari (1301-1349), nos informa que o povo era “alto, de compleição preta retinta e cabelos encrespados”. Um dos informantes de al-Umari lhe disse que “o ouro é extraído cavando-se buracos na profundidade que chegam à altura de um homem e são encontrados embutidos nas laterais dos buracos, ou às vezes no fundo deles” (DAVIDSON, 1992: 148).

Os séculos IX e X viram o apogeu do império negro de Gana. No entanto, no século XI, com o avanço almorávida, aqueles territórios foram teatro de grandes convulsões, como veremos a seguir.


2ª Parte -->

3 comentários:

  1. Amigo,1000 parabéns a você, nao pare com esse projeto nunca. Se possível ve se consegue por alguma coisa por ordem cronológica pra facilitar o entendimento da história.
    Parabéns, abraço

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  2. Muito bom, mas acho que há um equívoco no primeiro parágrafo logo abaixo a foto do califado subtitulada:
    ''Maior extensão do califado fatímida (909-1171). ''Onde diz:

    '''Os fatímidas tornaram-se rapidamente os reis mais ricos de seu tempo. No entanto, a liberdade cultural e religiosa dos primeiros tempos deixava pouco a pouco de existir: com o califa al-Haquim (996-1021), uma série de perseguições contra judeus e muçulmanos (não seriam cristãos? já que ali se deram as cruzadas?) teve início – até mesmo a Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, foi destruída – fato que deu início à pregação das cruzadas.

    Minha dúvida está entre os parênteses que colei acima, pergunto: não seriam perseguições a judeus e cristãos e não a muçulmanos?
    Obrigada

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