sábado, 22 de maio de 2010

As Sociedades da África Meridional

A presença de civilizações nativas tecnicamente avançadas e complexas na área de Moçambique, Botsuana, África do Sul e adjacências sempre causou um grande transtorno para os colonizadores brancos racistas que buscaram a todo custo esconder ou alterar os indícios destas antigas sociedades. Neste texto, uma análise de algumas destas descobertas e a importância de seu papel.




A historiografia e o problema das fontes

A história da África meridional apresenta muitos problemas. Por isso a Unesco, responsável pela História geral da Africa, promoveu, em 1977, em Gaborone (República da Botsuana), o encontro de um grupo de especialistas em historiografia da África meridional. Devido ao apartheid, a história dos povos negros do sul do Limpopo foi menos estudada que a de outras populações africanas. A apartheid causou efeitos nefastos para a historiografia da região.
"A tendência a centrar os estudos no passado da minoria branca dominante acentuou-se com as posições rígidas adotadas pelas universidades e editoras sul-africanas em geral, que se recusaram a aceitar a validade de fontes não-escritas para a reconstrução histórica".
Além disso, os historiadores brancos da República da África do Sul recusam o concurso de ciências como a arqueologia, a antropologia e a lingüística. Ainda mais sério é o fato de os historiadores oficiais do país do apartheid escolherem nos arquivos material concernente apenas aos brancos, deixando deliberadamente de lado os documentos referentes aos povos africanos. Para finalizar essa caracterização da historiografia da região sob o domínio do apartheid, observemos que"os ricos arquivos portugueses, que tanto contribuíram para a compreensão da história de muitas sociedades da África oriental, principalmente das litorâneas, documentos que auxiliaram no estudo da história pré-colonial das sociedades do Zimbábue, de Angola e de Moçambique, têm sido sistematicamente negligenciados pelos historiadores sul-africanos".
Estes historiadores não somente rejeitam a tradição oral como fonte sem valor, como também demonstram, em relação aos registros escritos, uma "seletividade inquietante" e anticientífica.
Toda a literatura histórica acumulada por quatro gerações de historiadores da África meridional inscreve-se contra a história dos povos africanos. Não tem sido fácil reunir a documentação para escrever esta História geral da África, mas, no caso presente, defrontamo-nos com uma política deliberada para ignorar, senão destruir os documentos existentes! A negação (ativa) da cultura e da história africanas é uma arma perigosa nas mãos dos que controlam o apartheid.
No entanto têm ocorrido mudanças no contexto da África meridional: a independência do Zimbábue em 1980 abriu amplo campo para a pesquisa. Também Angola e Moçambique, desde sua independência, oferecem novas perspectivas aos estudos, que já se iniciaram nos Estados vizinhos, como Malavi, Zâmbia, Botsuana, Suazilândia e Lesoto; multiplicam-se as conferências e os seminários, e há um esforço real no sentido de integrar as tradições orais.

O estágio de nossos conhecimentos

A história da África meridional é dominada por dois problemas: em primeiro lugar, o das datas em que os vários povos lá se estabeleceram, ou seja, dos movimentos ou migrações dos povos; em segundo, o da natureza do poder, que implica a necessidade de definir suas estruturas, o que, por sua vez, remete-nos à origem dos reinos ou Estados.
Primeiramente, deve-se dizer que as pesquisas mais recentes demonstraram a Antigüidade do povoamento khoi-khoi na região; alguns chegam a afirmar que os povos estabelecidos na região do Cabo eram importantes criadores de ovelhas. No sítio de Lydenburg, no leste do Transvaal, foram descobertas esplêndidas cabeças de cerâmica (século V da era cristã) e provas irrefutáveis da existência de agricultura. O início da Idade do Ferro Antiga, que terminou por volta de 1100, situa-se neste período. Usando o método de datação por carbono-14, R. R. Inskeep situa por volta dos anos 80+/- 20 antes da era cristã a data mais remota do aparecimento do ferro entre o Zambeze e o Limpopo. A cultura da Idade do Ferro Antiga propagou-se pela África meridional: as cerâmicas foram encontradas em muitos lugares.
Por volta de 1100, começou a segunda Idade do Ferro, ou Idade Média do Ferro, intimamente ligada às migrações dos povos de língua bantu. Os especialistas de Gaborone, examinando esta questão, rejeitaram a antiga teoria da migração bantu. Um grupo de pesquisadores e o professor C. Ehret, utilizando um corpus. modificado de 90 palavras especialmente adotado a partir das 100 palavras universais de Morris Swadesh, estudaram as correlações entre dois grupos de línguas da área central da África meridional. Um desses grupos compreendia dialetos shona bem variados, falados entre o Limpopo e o Zambeze, e o outro, os dialetos sotho, nguni, tsonga, chopi e venda, sendo este último chamado de língua bantu do sudeste. Segundo C. Ehret, "as primeiras populações de língua shona teriam se estabelecido no território a que hoje corresponde o Zimbábue, enquanto os Protobantu do sudeste teriam ocupado uma região mais ao sul, provavelmente no norte do Transvaal".
O período entre 1000 e 1500 foi decisivo para a história da África meridional. Novos modos de vida difundiram-se após 1100. Os Khoi-khoi tornaram-se criadores de gado e se espalharam por vasta área. A importância do gado também aumentou consideravelmente entre outros povos, provavelmente de língua bantu. É nesse período, ou mesmo antes, que se deve procurar a origem das grandes tradições culturais tão características dos povos de língua bantu dessa região, os Sotho-Tswana e os Nguni. Foi por volta de 1500 que se cristalizaram algumas dessas tradições, herdadas pelos principais grupos étnicos conhecidos no século XIX, diretamente de seus ancestrais. As mudanças influenciaram profundamente a vida nas comunidades de pescadores instaladas na costa, de pastores estabelecidos próximo do litoral do Cabo e de caçadores. Mas ainda nos faltam informações sobre esse período crucial. Os testemunhos escritos são extremamente raros e só tratam dos últimos anos do período. A arte rupestre, de modo geral, continua sem datação e apresenta problemas de interpretação difíceis de resolver. A tradição oral ressente-se de referências cronológicas quando remonta a esse período. Os dados lingüísticos ainda não foram suficientemente explorados; dever-se-ia tentar reconstituir sobretudo o vocabulário do antigo nguni e do antigo sotho, e seria proveitoso estudar os empréstimos de palavras khoisan nas línguas bantu e vice-versa.
Trabalhos de antropologia comparativa sobre problemas regionais a partir de uma perspectiva temporal apenas começaram.
Sérios problemas aparecem quando se confrontam indicações provenientes de várias fontes, inclusive as descobertas arqueológicas. É prática usual estabelecer-se paralelo entre uma tradição comum de cerâmica e laços de ordem lingüística ou étnica, muitas vezes mesmo quando os indícios são bastante fracos. Este capítulo se apoiará essencialmente nos resultados de escavações arqueológicas, mas as descobertas arqueológicas só serão associadas a grupos culturais e lingüísticos se os dados disponíveis assim o justificarem. Este rigor evitará críticas, válidas para grande parte de trabalhos anteriores: em muitos tratados e monografias consagrados a diversos povos, a especulação é freqüentemente elevada ao nível de hipótese douta e até mesmo apresentada como evidência.
Examinaremos sucessivamente a evolução das línguas bantu meridionais, seu desenvolvimento ao norte e ao sul do Drakensberg e a expansão dos Khoi-khoi.

A evolução das línguas bantu meridionais

As línguas bantu da África meridional pertencem aos grupos venda, sotho, tsonga, nguni e inhambane. Apesar de antigamente alguns autores considerarem que essas línguas e o shona constituíam uma subdivisão do bantu, pesquisas posteriores demonstraram que tal classificação era incorreta. O método léxico-estatístico mostra que as línguas shona, venda, tsonga, inhambane e sotho-nguni são ramificações de mesma importância do bantu oriental. Isso significa que a imensa maioria dos povos de língua bantu da África meridional pertencem a um único grupo lingüístico, distinto não somente da língua shona, mas também do venda do norte do Transvaal, bem como do tsonga e do inhambane, do sul de Moçambique e das planícies do Transvaal.
C. Ehret e seus colaboradores acharam a correlação mais forte entre o venda e o shona (55%), depois entre o tsonga e o shona (41%), seguidos do chopi (38%), do sotho (37%) e do nguni (35%). Para eles, uma vez que os Shona e os Bantu do sudoeste formam subgrupos distintos do ponto de vista lingüístico, é evidente que houve dois centros de difusão das línguas bantu para as vastas regiões do sudeste. C. Ehret e seu grupo vêem na correlação entre o shona e as outras línguas do grupo bantu do sudeste a prova de que o proto-nguni e o proto-sotho-tswana se difundiram rapidamente a partir de sua região de origem, onde são faladas as línguas sotho-chopi-tsonga, que ainda permanecem confinadas ao vale do baixo Limpopo. O nguni e o sotho-tswana, ao contrário, difundiram-se amplamente pelas duas vertentes do Drakensberg . A diferenciação lingüística entre os grupos sotho e nguni é muito mais recente que as outras divisões e ocorreu na região onde atualmente vivem os povos que falam essas línguas, isto é, na própria África do Sul, muito depois de lá se terem estabelecido os povos de língua bantu. Como veremos, os povoamentos típicos dos Tswana e outros Sotho e dos Nguni já existiam por volta de 1500, sendo razoável sugerir que já havia ocorrido a separação das línguas, o que nos daria como data-limite aproximada o ano de 1600. Esses dados confirmariam as raríssimas tradições orais que concernem principalmente às genealogias que remontam ao século XVI e a períodos anteriores.
É impossível estabelecer relação direta entre os dados arqueológicos e o aparecimento dos povos de língua bantu. Até há pouco tempo, os arqueólogos associavam esses povos a comunidades que praticavam a agricultura e a metalurgia, situando, portanto, sua chegada nos primeiros séculos da era cristã. No entanto, mais recentemente, R. R. Inskeep e D. W. Phillipson estabeleceram paralelo entre a expansão da última época da Idade do Ferro, a Idade do Ferro Recente, que começou por volta do ano 1600, e a difusão das línguas bantu na África meridional. Eles se limitam a observar que a difusão dessas línguas e a da cerâmica da Idade do Ferro Recente representam importantes mudanças culturais e a última grande mudança cultural desse tipo de que temos conhecimento. Em conseqüência, a chegada dos povos de língua bantu não pode estar relacionada a nenhum período arqueológico ulterior.
Não se pode afirmar que os Bantu tenham levado técnicas agrícolas superiores ou ferramentas melhores a toda parte. O que se deve enfatizar, no entanto, é que talvez novas técnicas tenham contribuído para o crescimento da produção e favorecido novas formas de sedentarização. A chegada dos Bantu não foi bem "o acontecimento", como querem fazer crer antigos pesquisadores.
Deve-se admitir que por um longo período houve interação entre as línguas shona, venda e tsonga na região entre o Zambeze e o Limpopo, o que poderia explicar o grande número de termos aparentados em nguni e sotho, e também a semelhança considerável das práticas sociais (herança patrilinear, circuncisão e poligamia). Os mesmos costumes e as mesmas formas de organização sociopolítica são resultado de longa coabitação. Deve-se observar que todos os grupos, afora os Nguni, têm totens correspondentes às linhagens ou clãs.
Os historiadores concordam quanto às migrações bantu na África meridional, mas é preciso se dobrar à evidência de que não houve invasão, e sim infiltração de pequenos grupos. As tradições orais não foram suficientemente examinadas, nem criticadas judiciosamente; elas poderiam fornecer informações que remontam ao século XVI e até a períodos anteriores. Os arqueólogos não deveriam ignorar esses dados.

Ao norte do Ukhahlamba

A segunda Idade do Ferro, ou Idade Média do Ferro, ocorreu entre 1100 e 1600. Esse período é representado por aldeias descobertas na região de Olefantspoort, em Melville Koppies e em Platberg. As aldeias compreendem dez ou vinte casas com chão de terra batida, dispostas num plano circular e cercadas por paliçada. Nas ruínas foram encontrados dentes de bovinos, ovelhas e cabras, utensílios de ferro e "grãos de milhete carbonizados em bom estado de conservação".
As culturas datadas da Idade Média do Ferro são, com certeza, de comunidades de língua bantu (1100-1600) e quase certamente, segundo R. J. Mason, de povos sotho-tswana. Nas aldeias podem ser encontradas algumas habitações com paredes de pedra. Exceto no caso do estilo Leopard's Kopje, ainda não foi possível encontrar nenhum sítio onde a passagem do início ao último período I da Idade do Ferro Antiga apareça claramente.
Pode ser que os arqueólogos tenham de abandonar esta importante distinção, ao menos em sua forma atual. O único sítio em que é possível verificar a transição fica em Eiland, no Transvaal central, onde o sal foi explorado durante todo o período. A cerâmica da Idade do Ferro Antiga foi substituída nos séculos XI ou XII por produtos de estilo Mapungubwe (na tradição de Leopard's Kopje) e mais tarde pela cerâmica de Phalaborwa. Não longe dali, o sítio de Silver Leaves (Tzaneen) mostra a mesma evolução.
Cerâmica e estilo de vida bem diferentes foram descobertos em Phala-borwa, um dos dois grandes centros produtores de cobre do Transvaal na época, situado próximo do Olifants - afluente do Limpopo que Vasco da Gama chamou, em 1498 de "rio do cobre" -, cerca de 80 km a leste do Drakensberg. A mineração vinha-se desenvolvendo desde pelo menos o século VIII, mas a povoação mais antiga, descoberta até agora remonta a um período entre 960 e 1130 da era cristã. O estilo da cerâmica não tem equivalente na Idade do Ferro Antiga, mas ela é praticamente idêntica à que é feita hoje pelos habitantes de Phalaborwa. Vários séculos antes do início do período aqui estudado, a cerâmica já tinha seu caráter atual, também encontrado entre os Lobedu, a cerca de 90 km ao norte. Isso prova que a cerâmica não é um barômetro para mudanças culturais. Desde há alguns séculos, a sociedade lobedu vem se diferenciando sensivelmente da de Phalaborwa, em particular no campo político (é famosa por suas rainhas da chuva). A própria Phalaborwa encontra-se agora na órbita cultural dos Sotho ao norte, mas em 1700, como Lobedu, fazia parte do reino venda, e há motivos para se acreditar que pelo menos no século XVII, senão mais tarde, os habitantes dessa localidade falavam uma língua próxima do venda, e não do sotho. Desde então, grandes mudanças vêm ocorrendo, mas que não se refletem na tradição da cerâmica. A continuidade na região foi assegurada por mineradores e comerciantes, que eram também ceramistas, os "indígenas" das tradições orais, que os chamavam de "Salang de Shokane" e os pretendiam diferentes - talvez porque fossem de cultura tsonga - e bem inferiores a seus conquistadores, estes, ligados à tradição política venda. Por outro lado, pode ser que alguns relatos que começaram a proliferar recentemente na região a respeito dos contatos com caçadores de língua não-bantu sejam fundamentados numa tradição autêntica. Parece então que, entre 1100 e 1500, houve, nas planícies do Transvaal, estabelecimentos agrícolas que comerciavam uns com os outros e trocavam seus produtos artesanais. As minas de Phalaborwa eram fonte de objetos de ferro num raio de pelo menos 30 km, e fonte de cobre em distâncias ainda maiores. É provável que parte desse cobre tenha alcançado o baixo Limpopo e, por via terrestre, a costa. Tzaneen fornecia sal à região, e, mais ao norte, o cobre extraído em Messina era comerciado em ampla área. R. T. K. Scully levantou a hipótese de que a sociedade tornara-se Estado graças ao desenvolvimento da indústria metalúrgica de Phalaborwa e ao comércio dela resultante. As chefarias instaladas em toda a planície do Transvaal, a princípio pequenas, tinham ainda de lutar com bandos de caçadores nômades e competir com chefarias vizinhas. Mas, no fim do período que aqui estudamos, ou talvez no século XVII, a administração dos Venda subjugou-as, unindo-as num só reino.
No triângulo ao norte do rio Vaal, delimitado por Rustenburg, KIerksdorp e Johannesburgo, foram encontrados vestígios de um grupo de aldeias pertencentes à mesma tradição, numa escala de datas entre 1060 e 1610, e lá R. J. Mason 18 realizou algumas escavações. Sobre os pavimentos de gesso das casas redondas havia plataformas, também de gesso, enquanto as paredes eram de materiais perecíveis, provavelmente paliçadas de madeira ou, dada a escassez de madeira no alto veld, bambu revestido de barro. Cultivava-se o milhete e criava-se gado, inclusive caprino e ovino. As casas eram dispostas ao redor de um espaço oval ou circular, com área de mais ou menos 1 ha, que, certamente, devia ser um curral (kraal) para o gado. As aldeias eram pequenas, compreendendo apenas de dez a vinte cabanas, ao menos nos três sítios estudados. Esse tipo de estabelecimento provoca grande interesse, pois precedeu a construção em pedra, que, segundo as evidências atualmente disponíveis, se difundiu amplamente no alto veld do Transvaal no século XVII. Como apenas quatro, das centenas de estabelecimentos identificados no Transvaal central e meridional, foram escavados, é bem possível que pesquisas futuras descubram sítios com muros de pedra, datando de período anterior a 1500. Isto é ainda mais provável quando se sabe que, no Estado Livre de Orange, um tipo de construção em pedra, o tipo N, remonta pelo menos a 1400-1450.
Há sítios do tipo N ao norte e ao sul do alto Vaal, até o rio Wilger, a oeste, e até o Drakensberg, ao sul e a leste. É uma área de boa pluviosidade e rica em pastagens. A disposição dos celeiros, estábulos e habitações com um muro cercando todo o estabelecimento é forte evidência da economia mista de agricultura e de criação de gado. Após 1600, o tipo N transformou-se em outros tipos de estabelecimentos, que se difundiram por toda a região do Estado Livre de Orange situada ao norte do atual Reino de Lesoto. Uma variante desses tipos posteriores, que apareceu o mais tardar em 1600, tem evidente caráter tswana.
Somente pesquisas futuras poderão determinar se os estabelecimentos construídos, não em pedra, mas em outros materiais, encontrados no triângulo Rustenburg – Klerksdorp - Johannesburgo, bem como, talvez, um sítio não datado de Lydenburg, mais a leste são, de fato, precursores dos estabelecimentos em pedra do tipo N ou próprios do Transvaal. Ao norte do Vaal, os sítios interiores à construção em pedra e os que correspondem aos estabelecimentos de tipo N ou de tipo próximo encontram-se na região entre os rios Marico e Crocodilo, território associado à dispersão de alguns grupos sotho, pelo menos desde o século XVI. Embora tentadora em vista dos dados de que dispomos atualmente, a hipótese de R. R. Inskeep, que identifica esses estabelecimentos anteriores à pedra e os de pedra ao modo de vida sotho e, indiretamente, ao grupo lingüístico sotho, ainda é prematura. As tentativas feitas anteriormente por R. J. Mason para relacionar diferentes estilos de cerâmica do período compreendido entre 1100 e 1500 naquelas aldeias a certos grupos tswana ainda não foram submetidas à prova do tempo. Somente pesquisas futuras poderão resolver esse problema.
No entanto os argumentos a favor dessa hipótese têm peso. Os estabelecimentos em pedra do tipo N estão na origem de grupos posteriores, um dos quais é bem característico dos Tswana (habitações bilobadas). Por outro lado, é válido traçar paralelos entre a difusão de novas tendências arquitetônicas e as tradições orais que narram os movimentos das famílias governantes, pelo menos depois do século XVI. Na região correspondente ao atual Zimbábue, os governantes fizeram construções em pedra durante o período que ora estudamos, e as ruínas em pedra nessa região ou em Moçambique estão associadas à expansão dos grupos dirigentes. A idéia do uso de pedras para a construção de paredes pode ter vindo daí. Mas talvez seja uma invenção local da região de Johannesburgo, onde as pastagens são boas, mas há pouca madeira. De qualquer forma, ao adotar esse material, os dirigentes políticos estabeleceram, sem dúvida, normas de prestígio e estilos que asseguraram a difusão desse novo tipo de habitação.
Os sítios de ocupação ao norte do Drakensberg mostram mudanças drásticas evidentes após 1100. O gado assumiu muito maior importância na economia em relação ao período anterior. O grau de organização local também cresceu, pois, durante o período em estudo, as dimensões dos estabelecimentos aumentaram consideravelmente. Os dados disponíveis cor respondem à impressão geral transmitida pela tradição oral de que os Estados começaram a se constituir no século XVI. Se compararmos essa situação com a do veld (Phala-borwa), ou com a da Botsuana, as transformações ocorridas perto do Vaal são ainda mais espetaculares. As mudanças nos tipos de estabelecimento e na cerâmica parecem ter sido bem marcantes. Como se explica tal fato?
É bem possível que a chave do enigma esteja na Botsuana, onde as pesquisas de J. R. Denbow levaram à descoberta de mais de 150 sítios datando de 800 a 1300. As escavações empreendidas em dois sítios mostram uma evolução local contínua da fase Zhizo da cerâmica Gokomere (Idade do Ferro Antiga) para os utensílios Tautswe. A maioria dos sítios na Botsuana central (norte de Mahalapye) mostra claramente uma pecuária intensiva. Alguns depósitos de estrume na região chegam a ter 1 m de espessura. A subsistência dos habitantes da área vinha, em parte, da pecuária: o meio era muito favorável a essa atividade, graças às boas pastagens do veld e às nutritivas folhas de mopane. Foi ali, e não em Natal, como acreditava T. N. Huffman, que o gado parece ter-se multiplicado. Os sítios da Botsuana mostram menos indícios' de comércio com a costa da África oriental após o ano 100 da era cristã, fato que não surpreende, pois o Zimbábue, e mais tarde o Mapungubwe, a leste, começaram a centralizar a atividade comercial. Após 1300 aproximadamente, o número de sítios descobertos decresce rapidamente, talvez porque o clima tenha se tornado mais árido - o Kalahari não é longe dali - ou em virtude de um deslocamento da região de incidência da mosca tsé-tsé, que teria forçado a emigração dos habitantes com seu gado.
É muito tentador associar esse declínio populacional com o aparente crescimento demográfico que teria ocorrido no oeste do Transvaal ocidental e com as evidências de criação intensiva de gado. Pode ser que alguns grupos que viviam parcialmente da pecuária se tenham instalado com seus animais num meio mais favorável próximo do Vaal e que os rebanhos tenham atraído outros grupos para suas comunidades. A introdução da lobola (dote pago em cabeças de gado) e dos contratos de clientela (para o gado) teria tornado isso possível, favorecendo os proprietários dos maiores rebanhos. A lobola, a clientela e o pagamento de tributo em cabeças de gado caracterizarão posteriormente as culturas sotho e tswana. A travessia do Vaal fez-se acompanhar da adoção de uma economia agropastoril e, mais tarde, da introdução da ordenha. Os autóctones provavelmente criavam gado, mas apenas para o aproveitamento da carne e não para a produção de leite.
Contra essa hipótese pode-se argumentar que até agora não foi possível estabelecer qualquer ligação entre a cerâmica Tautswe e aquela produzida nas margens do Vaal durante a Idade do Ferro Recente. No entanto ainda não se fez nenhum estudo comparativo nesse sentido, e estilos mais recentes adotados ao longo do Vaal não devem necessariamente ser idênticos aos antigos estilos dos imigrantes. Uma nova expressão pode ter-se desenvolvido do contato entre o estilo indígena e o importado.
Achamos que foi isto o que aconteceu. Mais tarde, uma mudança no meio ambiente natural ou humano (o desenvolvimento da organização política do Zimbábue) da Botsuana central levou à imigração em direção ao Vaal e ao aparecimento de modos de vida e de línguas característicos dos Sotho-Tswana. Como veremos, é provável que os povos que viviam parcial ou totalmente da criação de gado tenham se deslocado mais para o sul e para o leste e influenciado toda a população do sudeste e do sudoeste da África.

Ao sul de Ukhahlamba

Até agora só três sítios testemunham a existência da Idade do Ferro Recente ao sul do Drakensberg. Atualmente, o território é ocupado por povos de língua nguni, cujo modo de vida é mais centrado no gado do que entre os Sotho-Tswana; seus estabelecimentos são bem menores e menos disseminados, e sua cultura também difere em muitos outros aspectos da dos Sotho-Tswana.
Foram feitas escavações em Blackburn, próximo da lagoa de Umhlanga, a cerca de 15 km ao norte de Durban, que trouxeram à luz uma aldeia de mais ou menos 12 casas, duas das quais foram completamente exumadas. Construídas num plano circular, com 5,5 m de diâmetro, as estruturas parecem ter tido a forma de colméia e seriam sustentadas internamente por uma ou mais estacas centrais. As paredes provavelmente eram feitas de galhos e telhado, de sapé. Nesse aspecto eram muito semelhantes às construções ngum e khoi-khoi. As dimensões da aldeia correspondem igualmente ao modelo nguni e khoi-khoi. No sítio também se encontrou sucata de ferro. Os restos de comida incluíam ossos de caça, conchas e espinhas de peixe. Essas constatações sugerem ser antes uma aldeia de ancestrais dos Khoi-khoi ou mesmo de pescadores da costa, que um estabelecimento nguni. Como os Nguni, da mesma forma que os Sotho- Tswana, são conhecidos pelo tabu de comer peixe, as descobertas significam ou que esse tabu só se desenvolveu após o século XI ou que o sítio pertencia a caçadores do litoral de língua khoisan. A cerâmica, conhecida pela classificação NC2, tem uma vaga semelhança com a Thembu (nguni). O mais interessante é que o mesmo tipo de cerâmica foi encontrado numa grande área de ruínas próxima do Vaal: deve ter existido contato entre as populações das duas regiões. Todos esses indícios fornecem material para reflexão, mas é difícil chegar a uma conclusão, pois nenhum outro sítio foi descoberto. R. R. Inskeep tem razão, portanto, em se recusar a especular sobre esses contatos.
O sítio de Moor Park, próximo de Estcourt, remonta ao século XIII ou XIV. Localiza-se num promontório e é cercado por um muro que circunda não apenas as casas, mas também as clareiras e terraços, o que prova que se tratava obviamente de importante posto de defesa. Os vestígios das casas parecem indicar que os pisos eram retangulares. Se esse dado for correto, trata-se de um caso único em toda a África meridional. Seus habitantes utilizavam o ferro, cultivavam o sorgo, caçavam e criavam gado. Ainda não foi possível associar, com segurança, a nenhum estilo conhecido as cerâmicas ali encontradas. Não fossem os pisos aparentemente retangulares, o sítio estaria mais em consonância com as atividades econômicas atribuídas aos ancestrais dos Nguni do que com os vestígios da lagoa Umhlanga.
O último grupo de sítios foi encontrado em 1978 perto da foz do rio Umngazi, no Transkei; representa ocupações da Idade do Ferro Antiga, Média e Recente. Ali foram descobertas evidências de fundição de ferro e um piso de cabana feito com barro cozido semelhante aos pisos do alto veld. Não se fez nenhuma datação por carbono-14, tendo-se deduzido a época a partir dos tipos de cacos de cerâmica descobertos. Se se confirmasse uma data antiga para o piso da cabana e para a fundição, nossa concepção tanto das ligações entre as sociedades do norte e do sul do Drakensberg como da época em que os presumíveis ancestrais dos Nguni se estabeleceram tão ao sul sofreria mu- dança profunda.
No momento, a informação mais antiga que temos sobre os Nguni provém dos sobreviventes dos naufrágios ocorridos no século XVI nas costas de Natal ou do Cabo. As informações reunidas a partir de tradições orais indicam que o Transkei foi habitado pelos Xhosa, organizados em chefarias pequenas e instáveis, o mais tardar no século XV. Antes disso, as famílias dirigentes haviam vivido durante gerações perto das margens do alto Mzimvabu, mais especificamente perto do atualmente desconhecido córrego Dedesi. Em 1959, M. Wilson afirmou, com base em dados comparativos, que essas famílias lá viviam ao menos desde 1300. Mas essa data não é precisa; apenas aproximada. É certo que, por volta de 1500, os Nguni ocupavam quase todo o território no qual viviam em 1800, apesar de nas regiões ocidentais estarem misturados com os Khoi-khoi, a quem assimilariam progressivamente.
Os Khoi-khoi deixaram marcas profundas nas línguas nguni ocidentais e orientais. Segundo L. W. Lanham, tal influência só se iniciou quando as línguas xhosa e zulu começaram a se diferenciar. Isso deve ter ocorrido tardiamente, pois, pouco antes de 1600, um marinheiro que naufragou na costa afirma que essas línguas eram apenas dialetos de uma única língua, e ele havia percorrido praticamente todo o litoral. O khoi-khoi exerceu influência bastante acentuada sobre o zulu e o xhosa, contribuindo, respectivamente, com cerca de 14% e 20% do vocabulário. Essa influência transformou o sistema fonético dos Xhosa, o que significa que ela já se exercia quando o xhosa começou a se diferenciar do nguni oriental. Os Khoi-khoi devem ter ocupado um território que avançava profundamente em Natal, pois até as línguas nguni orientais foram afetadas.
Os Nguni começaram a se dedicar parcialmente à criação de gado, preferindo esta atividade à agricultura, provavelmente em razão da influência khoi-khoi. Mas seus rebanhos não foram diretamente adquiridos dos Khoi-khoi, pois estes criavam gado Afrikander, e os Nguni, a variedade Sanga, também comum no norte do Drakensberg. Em matéria de criação de gado, a influência dos Khoi-khoi foi bastante profunda, e os empréstimos de vocabulário indicam que eles aprenderam a tratar dos animais com povos menos numerosos. Foi com eles que os dirigentes xhosa aprenderam a montar em bois e a usá-los como animais de carga. Do ponto de vista religioso a influência khoi-khoi sobre os Xhosa também foi marcante; L. W. Lanham considera isto uma prova de que os Khoi-khoi viviam em terras nguni, presença mais tarde confirmada nas regiões fronteiriças ocidentais pela sobrevivência de topônimos khoi-khoi. Outras indicações da influência khoi-khoi podem ser encontradas possivelmente no tipo de habitação e, com certeza, na prática que consistia em cortar uma falange do dedo mínimo.
Fisicamente os atuais Nguni são mestiços do tipo "negro" com o tipo "khoi-khoi". A miscigenação é bem pronunciada entre os Xhosa, cujos gens parecem ser 60% khoi-khoi. Isto também é válido para os Tswana. Os Ngun orientais têm menor porcentagem de gens khoi-khoi, mas seu parentesco e ainda bem acentuado. Isso não é de espantar no caso dos Nguni ocidentais, e mesmo no dos Tswana, pois seus contatos com os caçadores e com os Khoi-khoi estão bem documentados; mas surpreende constatar indicadores tão claros de mestiçagem nos Nguni orientais.
Se juntarmos os elementos lingüísticos (que evocam a influência khoi-khoi) aos indícios biológicos (que podem ser atribuídos tanto aos caçadores como aos khoi-khoi), devemos concluir que, em dado momento, grande número de Khoi-khoi viveu em Natal, ou que os Nguni e os Khoi-khoi tiveram contato íntimo mesmo antes de os Nguni se instalarem em Natal, o que é menos provável, pois, neste caso, a proporção de palavras khoi-khoi seria mais alta nas línguas nguni orientais e ocidentais. Parece então que os Khoi-khoi tiveram papel mais importante do que o até agora reconhecido pelos historiadores. Como veremos, essa influência não se limitou aos Nguni, mas se estendeu a grande parte da África do Sul e da Namíbia.

Os Khoi-khoi




Em 1488, Bartolomeu Dias descobriu o Cabo da Boa Esperança; visitou Mossel Bay e viu africanos, com os quais teve contato. No final de 1497, durante uma expedição de Vasco da Gama, estabeleceram-se contatos com africanos na baía de Santa Helena (ao norte do Cabo) e também em Mossel Bay. Em 1510, o vice-rei das Índias, dom Francisco de Almeida, foi morto, juntamente com 60 soldados portugueses, em Table Bay, num confronto entre khoi-khoi e portugueses, o que prova que os Khoi-khoi eram suficientemente organizados para aniquilar a coluna portuguesa munida de armas de fogo. Um século e meio depois, os Khoi-khoi enfrentaram os holandeses (1652), que queriam se instalar no Cabo. Iniciou-se então uma longa guerra de extermínio dos indígenas.
Mais recentemente, tornou-se claro que, do ponto de vista lingüístico, o khoi-khoi pertence ao grupo tshu-khwe, da família de línguas khoisan, que inclui também várias línguas faladas pelos caçadores da Botsuana setentrional e mesmo uma língua falada na costa meridional de Angola. De fato, a língua khoi-khoi, dividida em dois ou três dialetos, era falada num território que, posteriormente, se estendeu do norte da Namíbia ao Cabo e, mais a leste, até o rio Great Fish. Além disso, em determinado momento, deve ter chegado a Natal, como mostra sua influência sobre o nguni. R. Elphick observa que, conseqüentemente, o khoi-khoi era uma das línguas mais faladas na África, e que a homogeneidade lingüística deste grupo parece indicar uma dispersão bastante recente e rápida a partir do berço dos Tshu-khwe. Os Khoi-khoi criavam gado de grande porte e ovelhas de cauda grossa, montavam bovinos e usavam bois para transportar seus bens e estacas para a construção de suas casas. Isso lhes dava grande mobilidade, característica que se ajusta à difusão de sua língua. Apesar das sensíveis diferenças em relação aos caçadores, seus caracteres físicos também correspondem ao grupo "khoisan". A maioria das diferenças pode ser atribuída aos efeitos de uma dieta diferente (leite), apesar de outras, como as peculiaridades serológicas, não serem facilmente explicáveis. Embora haja divergências nesses detalhes, todos os antropólogos aceitam atualmente que os Khoi-khoi e os caçadores pertencem à mesma entidade somática, o que confirma as conclusões tiradas a partir da lingüística. Os Khoi-khoi pertencem à população de caçadores da África do Sul.
Constata-se a presença dos Khoi-khoi no sul da província do Cabo em 1488. Tendo em conta a homogeneidade de língua em tão grandes distâncias, R. Elphick estima que os Khoi-khoi não tenham chegado muito tempo antes dessa data, embora o trajeto da Botsuana ao Cabo tenha durado pelo menos um século.
Os ancestrais dos Khoi-khoi conseguiram obter gado em grande quantidade no norte da Botsuana, e provavelmente desenvolveram a raça Afrikander, aprenderam a forjar metais, mas não a fundi-los, e abandonaram parcialmente seu modo de vida baseado na caça e na coleta. É muito tentador sugerir que alguns sítios encontrados por J. R. Denbow na Botsuana constituem vestígios de antigos estabelecimentos khoi-khoi, e não apenas campos abandonados por povos de língua bantu. Embora controversos, os restos humanos de Bambadyanalo, perto do Limpopo, também parecem ser indícios de populações que se dedicavam, ao menos parcialmente, à criação de gado, e pareciam fisicamente com os Khoi-khoi do século XI. O decréscimo populacional na Botsuana após 1300 fornece-nos uma data não apenas para a expansão dos agrupamentos humanos provavelmente de língua bantu, que foram para o Vaal, mas também para o início da expansão dos Khoi-khoi.
Do alto veld, os Khoi-khoi espalharam-se para o sul e sudeste, seguindo o curso dos rios quando possível. Chegando à confluência do Orange com o Vaal, uma parte desceu o Otange, até a Namaqualândia e a Namíbia, onde alcançaram Sandwich Harbour antes de 1677. Outra parte foi para o sul seguindo os cursos d'água, atravessou o Sneeuwberge e dividiu-se em dois grupos: um foi para leste e para o interior, da costa até Natal; outro, para oeste, chegando às maravilhosas pastagens na região do Cabo. Ainda um ramo deste último grupo migrou pela costa norte até o rio Olifants e juntou-se finalmente a seus irmãos da Namaqualândia.
Resta examinar um ponto discordante antes de aceitar essa hipótese: os vestígios encontrados em Middledrift. Este sítio arqueológico a céu aberto, próximo do rio Keiskamma, data do século XI. Lá eram criados animais domésticos, mas os utensílios não são da Idade do Ferro. Foram descobertos apenas fragmentos de cerâmica e utensílios de pedra. Se considerarmos Middledrift um sítio khoi-khoi, devemos abandonar a hipótese acima, porque a expansão khoi-khoi remontaria a um período por demais antigo, e talvez também porque as técnicas testemunhadas por esses vestígios são muito rudimentares. Mas não há razão para atribuí-lo aos Khoi-khoi apenas porque não corresponde a nossas idéias atuais sobre a cultura dos povos de língua bantu! Pode-se aceitar provisoriamente Middledrift como um sítio onde os caçadores adquiriam seu gado, assim como, um milênio antes, os povos instalados ao longo da costa do Cabo aperfeiçoaram a criação de carneiros. Os caçadores de Middledrift teriam sido assimilados ou expulsos pelos Khoi-khoi.
A expansão khoi-khoi afetou profundamente a vida de todos os habitantes da África meridional. Mencionamos seu impacto sobre os povos de língua bantu em Natal e no Cabo oriental. A hipótese mais aceita é a de que os Nguni não encontraram os Khoi-khoi em Natal, e que progressivamente repeliram ou absorveram os encontrados no Cabo oriental. O conjunto de informações disponíveis, porém, contradiz essa hipótese. Os Khoi-khoi encontraram estabelecimentos agrícolas dispersos a leste do rio Kei, mas os conquistaram para assegurar seu domínio no Transkei e talvez mesmo em algumas regiões de Natal. Levou um século, ou talvez dois, para as comunidades agrícolas das planícies situadas entre o Drakensberg e o mar alcançarem densidade suficiente para se tornarem mais poderosas numericamente que outras populações, e poderem assim dominá-las e absorvê-las. Isso explica por que os Xhosa adotaram tantos traços khoi-khoi, o que não é incompatível com o advento da dominação xhosa no século XVI.
A oeste, os Khoi-khoi influenciaram os Herero de forma diferente, mas também marcante. Sem adotar a língua khoi-khoi, os Herero acolheram seu modo de vida pastoral e provavelmente em parte a forma de organização clânica. Parece que esses povos de línguas bantu ocidentais encontraram os Khoi-khoi no oeste da Botsuana, de onde também emigraram para a Namíbia, porém, mais ao norte que os Khoi-khoi. Não é possível precisar quando isso aconteceu, mas não se pode descartar a hipótese de uma data anterior a 1500.
Politicamente, os Khoi-khoi dividiam-se em grupos de clãs, e, às vezes, quando o número de cabeças de gado aumentava, formavam unidades políticas maiores, sob a liderança de chefes hereditários. Era freqüente as relações entre as várias chefarias terem por base o tributo, pelo menos no século XVII, pois os Khoi-khoi, do Cabo ao Kei, faziam parte de um único sistema de tributos. A organização política baseava-se na riqueza individual, enquanto o sistema de herança e o regime matrimonial só transmitiam parcialmente a riqueza de uma família para seus descendentes. Conseqüentemente, apesar da grande distância entre ricos e pobres, os reveses da sorte podiam ocorrer em apenas uma geração. Acontecia de os mais pobres abandonarem esse modo de vida, voltando à caça e à coleta, como ocorreu com os strandloopers ("vagabundos de praia") do Cabo. Os pobres de determinado clã podiam unir-se para atacar um clã vizinho, apropriar-se do gado e melhorar sua situação. A medida que o gado crescia, fortalecia-se o sistema político, mas, se o número de animais se reduzisse por falta de chuvas ou devido a uma epizootia ou ainda em razão da intensificação do roubo de gado por criadores pobres, as tensões superavam os interesses comuns, os conflitos se multiplicavam e os chefes mais ricos tornavam-se as maiores vítimas dos ladrões, o que resultava na redução de sua riqueza e de sua autoridade no grupo de clãs. Assim, se é fácil compreender que a princípio os Khoi-khoi conseguiram impor-se aos agricultores, menos organizados e com menor mobilidade, a longo prazo as variações climáticas e as epizootias, assim como as pronunciadas desigualdades sociais entre os próprios Khoi-khoi favoreceram os fazendeiros, pelo menos, os do leste do Kei.
A presença dos Khoi-khoi teve conseqüências mais profundas entre os caçadores e criadores de ovelhas autóctones e entre os caçadores do litoral porque todos viviam dos mesmos recursos, numa concorrência maior do que com os agricultores e criadores de gado. Entre 1100 e 1500, os autóctones - todos nômades e, em princípio, todos caçadores - tinham várias ocupações. Ao longo do litoral, haviam se tornado quase sedentários e viviam dos produtos do mar. Na costa ocidental do Cabo e às margens do baixo Orange, entre Augrabies Falls e Prieska, criavam ovelhas de cauda grossa; no interior, viviam principalmente da caça e da coleta de veldkost (bulbos e raízes). Naqueles séculos, as regiões mais áridas do Karroo, as areias do Kalahari e os planaltos mais frios provavelmente não eram habitados. Em alguns pontos do leste, como talvez Middledrift, alguns caçadores começaram mesmo a criar gado.
Com a chegada dos Khoi-khoi, os criadores de ovelhas e possíveis criadores de gado bovino perderam seus rebanhos e voltaram a caçar, ou tornaram-se clientes dos Khoi-khoi. Os grupos que viviam no sourveld (estepe com terras ácidas) da costa ou nas praias sobreviveram por tempo suficiente para ensinar aos Khoi-khoi empobrecidos como se tornar strandloopers, mas, ao final, também foram dominados pelos Khoi-khoi. No interior, os pastores e os caçadores competiam com sucesso variável e se miscigenavam em graus diversos. Para os Khoisan, os caçadores eram apenas "ladrões" (san), e os caçadores consideravam, sem dúvida, os criadores de gado "larápios" que os afastavam das melhores fontes de água e dos melhores terrenos de caça. Em geral, por suas dimensões, os clãs khoi-khoi levavam vantagem sobre os pequenos bandos dos competidores. Porém, quando o meio se tornava mais hostil, os caçadores restabeleciam certo equilíbrio na medida em que muitos criadores viam-se forçados a recorrer à caça, e alguns chegavam a se integrar aos bandos de caçadores. Mesmo assim, o modo de vida khoi-khoi impunha-se progressivamente. No século XVII, o khoi-khoi havia se tornado a língua franca de todo o Cabo ocidental, o que denuncia certa dominação cultural. Parece evidente que a expansão khoi-khoi, qualquer que seja a forma exata que tomou, transformou a vida de todos os grupos de caçadores autóctones. Desde o século XIX, ao norte ou ao sul do Kalahari não há mais caçadores "em estado puro".

Conclusão

O fato mais marcante do período que estudamos no presente capítulo foi, ao lado da difusão da língua bantu, a expansão dos Khoi-khoi na África meridional. Esta provavelmente se deveu a uma deterioração das condições climáticas na parte do Kalahari situada na República da Botsuana ou por uma grande mudança da área de incidência da mosca tsé-tsé, senão pelos dois fatos. Qualquer que seja a causa, por volta de 1330, as regiões centrais e setentrionais da República da Botsuana, onde se desenvolveu uma forma original de economia pastoril, estavam sendo abandonadas. Alguns povos da região não eram khoi-khoi, mas de língua bantu, e levavam consigo seus rebanhos.
Na região do Zimbábue e no alto veld, ao sul do Limpopo, o gado foi absorvido pela economia agrícola, e os imigrantes, ao menos entre os ancestrais dos Sotho-Tswana, tomando o poder, começaram a estabelecer chefarias no norte do Drakensberg. Não sabemos ainda se alguns desses imigrantes chegaram a ir mais ao sul. É possível que os ancestrais dos Nguni tenham adquirido mais gado do que já possuíam, mas que o número de imigrantes tenha se mantido limitado. De qualquer forma, os Nguni desenvolveram uma economia mais centrada na criação de gado do que a dos Sotho-Tswana. Era uma inovação adaptada, suscitada pela observação do modo de vida dos Khoi-khoi que invadiram suas terras.
Os dados históricos ainda são bastante incompletos. Mesmo que todas essas hipóteses aventadas sejam confirmadas por pesquisas futuras, não teremos esclarecido o desenvolvimento de uma economia pastoril, mesmo no norte da República da Botsuana, talvez entre 800 e 1300. Tampouco saberemos a quem atribuir essa evolução. Ela provavelmente não poderia ser atribuída aos povos de língua bantu, pois muitos termos de pecuária da África meridional não são de origem bantu oriental. Poderiam ser de origem khoisan - um historiador os atribui às línguas do grupo sudânico central. No entanto, até o momento, os argumentos invocados em apoio a essa tese são por demais frágeis. Com efeito, seria necessário provar que populações de línguas do grupo sudânico central saíram em massa do nordeste do Zaire indo até a Botsuana e ao Zimbábue, e que esta expansão precedeu à dos povos de língua bantu. Estamos mais inclinados a crer que aqueles termos de pecuária são de origem tshu-khwe, e que foram os ancestrais dos Khoi-khoi que, durante cinco séculos, aperfeiçoaram o modo de vida pastoril. Eles adotaram a criação de gado, mas não quiseram abandonar as tradições de nomadismo e caça.
Existem ainda muitas dificuldades para delimitar as realidades históricas da África meridional. Muitos pontos permanecem obscuros no estudo das migrações bantu:
"Se os Nguni é os Sotho estiveram reunidos numa determinada época, quando e onde se separaram? Que caminhos seguiram em sua migração para o sul? Quando atravessaram o Limpopo?"
Outra dificuldade vem do fato de que a maior parte dos dados arqueológicos ao sul do Limpopo foi recolhida no Estado Livre de Orange e concerne aos Sotho-Tswana. Para termos uma síntese dos nossos conhecimentos, devem ser feitas pesquisas complementares no sul de Moçambique, na Namíbia, na Suazilândia, no Lesoto e na Botsuana.

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