A pesquisa desenvolvida neste artigo foi realizada durante um trabalho de organização da documentação epigráfica e textual referente aos grupos berberes norte-africanos na Antiguidade. Oportunamente, discutimos as especificidades da documentação à disposição do pesquisador desta área: arqueológica, epigráfica e textual e apresentamos nossa contribuição para a definição do conceito teórico tribo, normalmente utilizado de maneira vaga e pouco fundamentada.
Introdução
Norte da África, enquanto laboratório de transformações culturais impostas por mudanças históricas, constitui um campo de análise extremamente rico para o cientista humano. Esta região pode ser considerada, geograficamente, uma "ilha", pois encontra-se separada da Europa pelo mar e do resto da África pelo deserto. De fato, sua ligação física mais direta é com o Oriente, esse mesmo Oriente com o qual grande parte de sua História se mescla. No entanto, apesar das barreiras físicas, a Península Ibérica em especial, mas igualmente a região mediterrânica central, desde tempos os mais remotos, estabeleceram uma série de contatos e intercâmbios humanos, culturais e econômicos com a região norte-africana. De fato, um estudo acurado destes aspectos demonstra que, apesar de não podermos ignorar elos entre a região central norte-africana e sua área setentrional, foi com relação aos povos do continente europeu e do Oriente Próximo que a maioria dos processos ocorreu.
Conforme apontamos acima, desde o Neolítico, trocas culturais e mesmo econômicas ocorreram principalmente com a Península Ibérica e as ilhas da região do Mediterrâneo central. Por outro lado, durante a chamada Antigüidade Clássica, o Oriente, representado pelos fenícios, e através destes, pelos egípcios, estabeleceu um vínculo cultural permanente com os povos autóctones desta região. A chegada dos invasores islâmicos no século VII de nossa era representou, de uma certa maneira, uma continuidade de contato com o Oriente e não uma novidade. No entanto, gregos e, principalmente romanos, também ali aportaram. De fato, durante o Império Romano, todo o Norte da África, com exceção do Egito o qual representava uma unidade imperial a parte, foi transformado em províncias específicas: da Mauritânia (Cesariense, Tingitânia e Sitifensi), Numídia (Cirtensi e Militaria), Africa Proconsular, Tripolitânia e Bizacene.
De colonizadores em colonizadores, os povos autóctones do Norte da África depararam-se, portanto, com fenícios, romanos, vândalos, islâmicos e, já em tempos modernos, com europeus (franceses e italianos essencialmente). Sua existência, deste modo, sempre foi pautada e analisada a partir da perspectiva do outro, do estrangeiro. Entretanto, com o advento dos processos de libertação do período pós-colonial, e com a conseqüente formação de novas identidades nacionais nos países norte-africanos, houve uma identificação e um retorno ao passado islâmico. Aspectos históricos e culturais deste passado foram, então, valorizados.
Na esteira desta reificação de uma identidade nacional islâmica, os povos autóctones norte-africanos, os chamados berberes, também ganharam voz. De fato, a determinação da identidade étnica de um povo é uma criação político-social, ativada e estruturada através de estratégias discursivas dentro do próprio grupo (Hall 1997: 41). Entendemos que esta formação étnica é uma construção ditada pelas circunstâncias históricas e é de difícil percepção na cultura material. Entretanto, o pesquisador que lida com o Norte da África encontra-se absolutamente familiarizado com a existência de um grupo social específico, os já citados berberes, o qual é identificado (inclusive nos escritos contemporâneos), através de aspectos tanto culturais: lingüísticos e sociais, como também físicos, de maneira difusa, desde o chamado período proto-histórico, sempre em contraponto aos diversos povos que aportaram e dominaram o Norte da África ao longo de sua história, conforme mencionamos no início de nossa introdução.
A constituição de uma memória islâmica no Norte da África, a qual foi fruto da independência destes antigos países colônias frente ao europeu, gerou, pois, uma reação oposta à política praticada por esses mesmos europeus anteriormente, qual seja, a da recuperação do passado greco-romano destas regiões. Apesar de pesquisadores renomados, como o arqueólogo Gabriel Camps e mesmo Stephané Gsell, terem realizado uma série de estudos a respeito dos povos autóctones norte-africanos durante o período de ocupação fenício-cartaginês e greco-romano, estes povos não possuíam a primazia nas pesquisas historiográficas que hoje em dia possuem. De fato, à resposta política dos países libertos do jugo europeu devemos acrescentar uma guinada profunda que ocorre no mundo da pesquisa "clássica" européia. Entre os anos 50 e 60, publicações como a de Biagio Pace, Arte e Civiltà della Sicilia Antica e Luigi Bernabó Brea, "Leggenda e archeologia nella protostori siciliana" (Kokalos), sobre os povos autóctones siciliotas, fizeram parte de uma grande onda, até hoje muito forte, de recuperação da história dos povos marginais ao domínio grego e ao Império Romano.
A nossa tese de Doutoramento, da qual este artigo é fruto, insere-se nesta contextualização. Ao propormos a análise iconográfica das cunhagens emitidas por dois grupos autóctones do Norte da África, os mouros e os númidas – os últimos divididos em masesilos e massilos –, entre o final do século III a.C. e a segunda metade do século I a.C., nossa preocupação permanente foi a de efetuar uma pesquisa resgatando a história do ponto de vista interno destes povos, e não a partir da ótica romana ou mesmo fenício-cartaginesa. Isso nos obrigou a avaliar o raio de ação dos documentos disponíveis (textuais e arqueológicos) como também nos obrigou a repensar as categorias analíticas que normalmente são utilizadas nas pesquisas de História Antiga. Apresentamos a seguir o resultado destas reflexões com relação a definição social dos povos autóctones e apresentamos nosso mapeamento dos referidos povos.
Tribo ou grupo indígena: estabelecendo um conceito
A imensa maioria dos pesquisadores ao tratar da Berberia utiliza o termo tribo para designar a divisão estrutural básica dessa sociedade (Whittaker 1993; Gsell 1920-1930; Euzennat 1963; e outros). No entanto, muitos têm consciência das dificuldades que o uso específico da palavra tribo acarreta (Fentress 1982: nota 13). Além de questões restritas à esfera da Antigüidade, o termo é problemático conceitualmente em razão da carga negativa a ele agregada, vinda das concepções evolucionistas do século XIX. Por exemplo, foi abolido da antropologia brasileira, onde se passou a utilizar, ao invés, o termo grupo indígena (ou grupo social), menos carregado de significados secundários. Como já salientamos, mesmo internacionalmente existe um longo debate sobre a pertinência e as conotações da palavra tribo (Whittaker 1993: 332, notas 4 e 5), que se encontra em desuso mas não foi ainda totalmente abolida. Isto porque o uso do conceito "sociedade tribal" é preferido em relação ao de "primitivo", que traz embutido em si a mesma carga negativa que acabamos de relacionar ao termo tribo. Entretanto, uma vez que a produção acadêmica brasileira solucionou a questão passando a utilizar o neutro conceito de grupo indígena (o termo indígena é adotado, por nós, para marcar o caráter autóctone dessas pessoas), optamos por seguir essa tendência e o adotamos também, no lugar de tribo, mas não no lugar de "sociedade tribal", que é menos tendencioso do que "sociedade primitiva". Deste modo, utilizamos o termo grupo indígena para designar as diferentes nomeações gregas e latinas, que aparecem nas fontes antigas, de populações que se organizaram socialmente na Berberia proto-histórica. No entanto, visto que o termo grupo indígena é mais abrangente do que o termo tribo, apresentamos a seguir algumas considerações sobre o primeiro.
Na Berberia da Antigüidade, o grupo indígena pode ser entendido como a formação social básica a habitar a região, seja como nômade, semi-nômade ou sedentária. Stéphane Gsell (1927, vol V.: 82-83) definia os nomes encontrados nos textos antigos gregos e latinos como sendo ou de tribos ou de povos. O termo povos era utilizado quando a referência, segundo ele, fosse para um conjunto de povoamentos unidos por laços mais ou menos estreitos. Recentemente, C. R. Whittaker (1993: 332-333) mencionou a divisão desses grupos em "segmentos ferozmente independentes, denominados por conveniência de pequenos clãs". Estes clãs seriam compostos por diversos grupos familiares menores. Gabriel Camps (1960), em sua obra dedicada ao rei númida Massinissa, ao discorrer sobre a proto-história da Berberia, escapa ao uso de qualquer um desses termos, preferindo referir-se a povos nômades, semi-nômades e sedentários. Camps acredita em uma unidade "étnica" (aspas nossas) dos povos berberes revelada pelos dialetos berberes, hoje em dia fracionados e separados, reduzidos a ilhas, mas todos derivados de uma antiga língua (Camps 1960: 124-125).
No entanto, essa unidade étnica não expressa unidade política, isto é, centralização do poder. Os grupos indígenas divididos em clãs, que são compostos por pequenos grupos familiares, em determinados momentos históricos, da Antigüidade até o século XX se nos lembrarmos da organização social dos touareg saarianos (Seligman, 1935: 128), admitiram relações de vassalagem com outros grupos e formaram unidades políticas maiores que constantemente variaram de tamanho. Desta maneira e em alguns momentos, um certo número de grupos indígenas e de "confederações", oriundos destes, podem ser identificados, como no caso dos "reinos" pré-romanos masesilo, massilo, númida e mouro. No entanto, o grau de coesão das facções componentes e do próprio grupo indígena variou enormemente ao longo da História, e, segundo C. R. Whittaker (1993: 333), foi essencialmente efêmero.
Na verdade, a maioria dos nomes dos grupos indígenas autóctones da Berberia que a historiografia moderna conhece é oriunda das fontes textuais gregas e latinas. Estes nomes foram sempre apresentados, genericamente, como sendo referentes a um povo, uma natio (no sentido de "conjunto de indivíduos nascidos no mesmo lugar"), mas que poderiam, eventualmente, estar designando algo mais específico, uma gens (subentendendo-se um conjunto de pessoas que, pelos varões, se ligam a um antepassado comum, varão e livre).
Uma questão primordial para o estudo da sociedade norte-africana é entender quais categorias dessa organização social delineada acima estão por detrás dos nomes de grupos conhecidos, que denominamos grupos indígenas.
Acreditamos ser um erro considerar como referente a um agrupamento fechado e independente cada um dos nomes que a literatura e a epigrafia grega e latina, e a epigrafia púnica nos revelam. Como veremos nem sempre é possível depreender, a partir da citação, se se trata de um grupo indígena específico, um sub-grupo (clã, família, etc.), ou uma denominação maior ("confederação" ou super-grupo). Este tipo de questionamento teria que ser mediado pelo estudo da ocupação territorial, dos padrões dessa ocupação e do conjunto da cultura material a eles relacionados.
Dessa maneira, apresentamos as mais importantes citações textuais que mencionam os grupos indígenas berberes, acrescentando as informações provenientes da documentação material epigráfica, com o intuito de vislumbrar parte dessa organização.
A documentação
A história e a organização social dos habitantes autóctones do Norte da África pré período fenício-cartaginês é praticamente desconhecida. Os dados que possuímos sobre eles são, na sua imensa maioria, de ordem material e, mais especificamente, relacionados com a esfera excepcional da morte. Ou seja, possuímos um quadro razoavelmente completo dos tipos de túmulos e áreas de enterramento desses povos desde a sua proto-história. No entanto, as formas de ocupação espacial e a cultura material a elas relacionadas ainda não foram estudadas de maneira a formar um corpus documental consistente.
Eles possuíam uma língua própria, como vimos acima, que se convencionou chamar de líbica na falta de uma denominação original, mas essa língua só ganhou um formato escrito em torno do século IV a.C. após contatos mais extensos com os fenício-cartagineses e com a língua destes, o fenício, que no Ocidente ganhou traços específicos, e passou a ser denominada, atualmente pelos estudiosos, de púnico, do nome dado pelos romanos aos herdeiros desse povo semítico no ocidente mediterrânico.
Possuímos, por outro lado, poucos textos líbicos da Berberia. A grande maioria deles são inscrições de caráter religioso, bilíngües com o púnico ou neo-púnico (forma cursiva do púnico desenvolvida após a destruição de Cartago no século II a.C.).
As fontes escritas mais prolixas sobre os autóctones continuam sendo os textos de autores gregos como Heródoto, Diodoro da Sicília, Ptolomeu e Políbio, e romanos como Salústio, Tito-Lívio, Plínio, o velho, Tácito e Apiano, entre outros.
No entanto, a leitura dessas obras tem que ser feita com extremo cuidado, através da análise da coerência interna e da comparação com os dados fornecidos pelas fontes materiais. Além disso, as fontes originais utilizadas pelos autores antigos devem ser detectadas na medida do possível. A natureza dos temas narrados concentra-se em aspectos intimamente ligados aos acontecimentos militares que envolveram cartagineses e gregos, num primeiro momento, cartagineses e romanos, em seguida, por ocasião das Guerras Púnicas, e, por fim, as lutas entre os partidos romanos de Mário e de Silas, César e Pompeu, Otávio e Marco Antônio. Além disso temos obras como o Bellum Jugurthinum de Salústio, onde ele narra a guerra do berbere Jugurta pelo poder – guerra essa que envolveu Roma e ocorreu entre os herdeiros de Massinissa; ou então, textos acerca da convivência entre as populações locais e o poder romano, como nos Anais de Tácito, onde se lê sobre a revolta de Tacfarinas, líder do grupo indígena musulâmios, no século I d.C.
As exceções são poucas, mas existem. Assim, Heródoto, em um período anterior ao acirramento das agressões entre cartagineses e gregos, que ocorre no final do século V a.C., é o primeiro a escrever sistematicamente sobre os indígenas do Norte da África. No entanto, ele trata mais detalhadamente dos grupos que habitavam a parte oriental da Tunísia e a Líbia atuais. De qualquer forma, seu relato é muito interessante porque é o primeiro relato "etnográfico" que possuímos.
Geograficamente, as fontes textuais greco-romanas localizam os grupos mormente na região oriental da Berberia oriental, isto é, na costa leste da atual Tunísia. A proximidade com a colônia grega de Cirene com certeza facilitou os primeiros contatos entre gregos e autóctones. Para a profusão de nomes compilados nesta área, temos a contrapartida de uma exigüidade de outros para as áreas onde futuramente vão se formar os "reinos da Numídia e da Mauritânia", que correspondem, grosseiramente, às regiões do atual Maghreb.
Mais além, a visão que as fontes escritas gregas e latinas nos trazem é, antes de tudo, baseada na forma de vida que essas pessoas levavam. Apresentada de forma antinômica, isto é, ou eles são nômades ou são sedentários.
Este tipo de pesquisa forçosamente é dependente das fontes textuais. No entanto, a documentação epigráfica, quando arrolada, foi utilizada como parâmetro essencial para a determinação da veracidade dos textos. Procurar entender a organização social de um povo a partir de uma visão estrangeira pode levar a erros graves, deste modo o procedimento inverso, isto é, partir-se dos dados epigráficos seria o ideal, entretanto, no estado atual das pesquisas arqueológicas na área, este método não é quantitativamente satisfatório. Por outro lado, os dados provenientes da análise das diferentes categorias materiais de uma cultura possibilita abordagens próprias e específicas. O conhecimento que esse tipo de documento permite é muito diferente daquele construído tendo como fonte a documentação textual. A fala dos objetos, das estruturas, da organização espacial de uma sociedade é uma fala intrínseca a ela, permite uma visão global de dentro para fora, e não apenas de segmentos – como ocorre, em geral, com relação às fontes textuais. A documentação material berbere e púnica possui um atrativo ainda maior: representa praticamente a totalidade da documentação produzida por eles, a qual os estudiosos modernos puderam recuperar até o momento. Afora as inscrições – na sua imensa maioria funerárias; os grafites – especialmente na cerâmica; e as legendas monetárias, não possuímos fontes textuais diretas desses povos. A documentação textual latina do Norte da África sob domínio romano, apesar de abundante, é muito posterior ao período ora abordado.
Os pastores e agricultores de Heródoto
As primeiras indicações sistematicamente arroladas vêm de Heródoto. A maioria dos grupos indígenas que este autor grego elenca está localizada para além da Berberia oriental. A importância de Heródoto enquanto fonte textual vem de dois fatores: a primeira está centrada no fato de ser o relato de Heródoto a relação sistemática mais antiga que conhecemos – menções existem, de fato, em textos mais antigos, mas são esporádicas e fragmentárias; a segunda, diz respeito à categorização que Heródoto nos apresenta ao dividir os indígenas em nômades (pastores) e agricultores. Essa representa a primeira informação de ordem sócio-econômica de que temos notícia.
Heródoto (IV, 181, 191) descreveu a partir do Egito os: adimarquides, giligames, asbites, ausquises, bacales, nasamões, psilos (extintos), maces, gindanos, lotófagos, maxlies e auses. Os primeiros, até os maces, habitavam a área litorânea a partir da Sirte Maior (Golfo de Sidra). Os últimos habitavam as margens do lago Tritonis. Deste modo, adotando a localização de St. Gsell (1927, vol.V: 82-83), em torno de meados do século V a.C., apreendemos que, na região anteriormente denominada Sirtes (entre a Sirte Menor e a Sirte Maior nas atuais Tunísia e Líbia), viviam, de forma nômade, todos esses grupos indígenas.
Os nasamões (Heródoto, II, 32) ocupavam inicialmente o litoral oriental deste grande "golfo", que corresponde ao litoral da atual Líbia até a região de Barqa, e logo em seguida avançaram em direção à costa meridional, tomando o lugar dos psilos, que, então, desapareceram. J. Desanges, seguindo a orientação geográfica que Heródoto apresenta, situa-os, ele também, nas costas orientais das Sirtes, mas afirma que, quando eles se distanciavam de sua zona de ocupação habitual, nos períodos de transumância, a direção que tomavam era sudeste, isto é, para o oásis de Augila (atual Aoudjila) (Heródoto, IV, 172) (Desanges 1980: 370).
Os maces (Heródoto, IV, 175; V, 42) tomam posse da área ocidental da Sirte Maior (Golfo de Sidra), e mais a oeste, na região onde o Cinips corre. Este rio, identificado com o atual oued Oukirré ou el-Khaâne joga-se no mar a 18 km. para o sudeste de Lebda, a antiga Leptis Magna (Desanges 1980: 258). J. Desanges acredita que os maces foram os primeiros getulos (analisados mais à frente), a travarem contato com os romanos (idem 367, n.4).
Mais a oeste encontra-se o território dos gindanes (Heródoto, IV, 176). Antes deste povo, os lotófagos (Heródoto, IV, 177) possuíam a área situada entre a região do Cinips e da Sirte Menor (Gsell 1918, vol.lII: 131). Entretanto, na opinião de St.Gsell (1927, vol V: 82) este nome fora dado pelos gregos aos mesmos gindanes, pois estes, vivendo ao longo do litoral africano, alimentavam-se das frutas do lotos (jujubeira). De fato, J. Desanges assinala o uso do termo em Plínio, no genitivo: lotophagon, e o liga a uma fonte grega. Além disso, este mesmo estudioso bem avalia a dimensão exata desse nome ao lembrar-nos que o termo lotófago evoca simplesmente a alimentação de alguns desses grupos, feita a partir das frutas do lotos, cujas diferentes espécies crescem selvagemente em várias partes do Norte da África oriental (Desanges 1980: 267).
Retomando a distribuição espacial dos grupos indígenas apresentados por Heródoto, ao redor do grande lago Tritonis – situado na Sirte Menor – encontramos os dois últimos grupos indígenas apresentados pelo historiador grego, os maxlies (Heródoto, IV, 178) e os auses (Heródoto, IV, 180), separados pelo rio Tritão, que deságua no lago. Segundo St. Gsell (idem) este lago seria aquele que vemos, hoje em dia, ao fundo do Golfo de Gabès.
Heródoto (IV, 181) escreve: "Eu acabei de indicar os líbios nômades que habitam ao longo da costa marítima. Abaixo deles, para o interior, encontra-se a Líbia das feras selvagens..." (Camps 1960: 18). Desse modo, até o momento todas as indicações apresentadas foram com relação a grupos nômades. Na verdade acreditamos que esses grupos fossem semi-nômades, pois gravitavam em uma área fixa, entre o litoral e o interior das Sirtes.
Dentre os livros consagrados por Plínio, o velho, à geografia regional, a descrição da África representa apenas a décima-quarta parte. Ao arrolar os grupos indígenas dessa região, ele avança até as Sirtes, e assim repete alguns dos nomes mencionados por Heródoto, como os nasamões. J. Desanges compara a lista de Plínio (V, 33) com a de Estrabão (XVII, 3, 23). Os nomes dos grupos indígenas mencionados por Estrabão são: marmáridas, psilos, nasamões, getulos, asbites, garamantes. A lista de Plínio inclui seis grupos: marmáridas, acrauceles (substituindo os psilos), nasamões, asbites, maces e garamantes.
A conclusão principal de J. Desanges, acerca dessa lista, é que o escritor latino reuniu essas informações de uma tabela etnográfica muito antiga, que poderia ser relacionada ao próprio trabalho de Estrabão, mas que também poderia pertencer às anotações de Posidônio (Desanges 1980: 368).
Os maces, pois, representariam os primeiros getulos conhecidos dos romanos e habitariam a região do rio Cinips. Os nasamões, que estavam localizados para o leste do território dos maces, mantinham contatos com estes no século IV a.C. (idem: 367-368, nota 4 e 370). Os marmáridas são os situados mais para o oriente de todos, vizinhos do Egito (Estrabão, II, 5, 33 e Plínio, V, 33).
Os garamantes são mencionados por Heródoto (IV, 183) como guerreiros que se utilizavam de carros: "Os garamantes caçam os etíopes trogloditas com carros puxados por quatro cavalos". É exatamente esta a imagem que vem das numerosas pinturas e gravuras de carros do Fezzan e do Tassil des Ajjer, do Grande Atlas marroquino, da Mauritânia atual e de inúmeras regiões saarianas (Camps 1960: 21).
Estas imagens recuperadas pela Arqueologia são tão numerosas e estão localizadas tão regularmente que verdadeiras rotas saarianas foram demarcadas tendo-as como base. Uma dessas rotas atravessava o Fezzan, a antiga região dos garamantes, garantindo as relações entre o Mediterrâneo e a região de Niger.
De qualquer forma, Heródoto (II, 32) situa os garamantes no que seria uma terceira zona, ao sul das Sirtes e a leste da Líbia dos agricultores, ou seja, nas proximidades do deserto. Os garamantes eram poderosos, Plínio (V, 34) menciona sua hostilidade para com a expedição de L. Cornélio Balbo em 21 a.C., e Tácito (Anais, III, 74, 3 e IV, 50) reporta seu auxílio a Tacfarinas, no século I d.C. Afora a imagem de guerreiros que nos chegam a partir dos relatos textuais e das imagens rupestres, os trabalhos de Charles Daniels, que durante 19 anos escavou sistematicamente a área garamante, revelaram importantes dados acerca da evolução interna desse grupo e, principalmente, demonstraram que eles não eram nômades, pois possuíam cidades importantes como Zinchecra, Germa ou Garama (atual Djerma) e um entreposto em Saniat Gebril.
Acreditamos ser mais plausível a idéia que os garamantes fossem uma "confederação", dada a extensão territorial de sua ocupação e a importância de sua cultura material revelada pelas escavações arqueológicas. O próprio nome "garamantes" fornece indícios para crermos na segunda hipótese. A palavra garamantes (=ag german) significaria pessoas dos vilarejos (ou dos Ksours – "mercados"). Garama e garamantes ligam-se à raiz GRM, "agerem", que pode ser traduzida por aglomeração, burgo ou vilarejo (Camps 1960: 154). As ligações entre esses grupos que apenas vislumbramos, nos traz indícios de uma rede de contatos organizada.
A oeste da área dos auses, isto é, já na Berberia oriental, Heródoto (IV, 187 e 191) menciona outros grupos indígenas, dedicados à agricultura e que moram em casas. Ele afirma: "Mas no poente do lago Tritonis os líbios não são mais nômades e não possuem os mesmos costumes... são os líbios cultivadores... eles possuem casas e são chamados de maxies". Muito provavelmente estes indígenas, os maxies, devam ser localizados na mesma área dos grupos semi-nômades relacionados acima. Isto é, habitavam a Tunísia ao longo do lado oriental.
Junto com os maxies temos também citados os zauéces e os gizantes. Heródoto (IV, 194) diz que, de maneira análoga aos primeiros, os outros dois também dedicam-se à agricultura e moram em casas. No território dos gizantes estava situada uma montanha, que St. Gsell identifica com a cadeia da Zeugitânia, acima da planície de Enfida. Desta maneira, alcançamos a região que fará parte do território cartaginês primeiramente; e, após 146 a.C., da província romana Africa Vetus (Heródoto IV, 191, 193 e 194, respectivamente) (Gsell 1927, vol.V: 83).
Os maces, os maxies e os nasamões, dos povos citados por Heródoto, reaparecem nas fontes relativas a períodos mais recentes. Todos continuam a habitar as costas orientais e meridionais das Sirtes, ao menos até o fim do século I d.C. (Diodoro, III, 40, 1 e 49, 1; Ptolomeu, IV, 3, 6 p.642 e IV, 6, 6 p.746; Estrabão, XVII, 3, 20; Plínio, o velho, V, 33 e 34). Com relação aos maces temos o relato do Pseudo-Cílax (Périplo, 109) sobre seu modo de vida, que acreditamos ser mais condizente com o semi-nomadismo: no verão eles retiravam-se da zona litorânea da Sirte Maior e dirigiam-se para o interior, onde encontravam fontes de água para seu rebanho (Desanges 1980: 376).
Outros nomes de grupos indígenas chegaram até nós através de citações posteriores a Heródoto e anteriores a Plínio, o velho, e Pompônio Mela: os erébidas, os mimaces e os mindones (Gsell 1927, vol. V: 84-85). Eles são citados por Filistos, o siracusano, que escreveu em torno da primeira metade do século IV a.C., e por Éforo, contemporâneo de Filistos. A região ocupada pelos erébidas é situada, de maneira análoga à dos grupos anteriormente citados, entre as duas Sirtes (Gsell 1918, vo.III: 85), isto é, na área nômade de Heródoto. Quanto aos outros dois grupos, os mimaces e os mindones, não possuímos mais nenhuma informação sobre eles.
A Berberia dividida entre mouros e númidas
Retomando, em sua obra Heródoto divide os grupos indígenas que apresenta a partir do seu modo de vida. Assim, primeiramente ele relaciona os grupos nômades da Líbia oriental, cujas principais denominações procuramos apresentar aqui. A esta região o historiador grego opõe a Libia habitada pelos cultivadores, que é montanhosa, arborizada, etc.
Uma região arborizada e montanhosa aplica-se a todo o Norte da África, e não apenas aos territórios cartagineses do Sahel ("litoral"), que são áreas planas. O lago Tritonis é, portanto, para Heródoto, um limite geográfico importante, e marca a separação entre os nômades e os cultivadores, habitantes de moradas fixas.
O relato que Diodoro da Sicília (XIII, 80 e XX, 38-39 e 55-57) faz da expedição do tirano de Siracusa, Agátocles, a África, no final do século IV a.C., menciona diversas vezes os nômades, povos indígenas vizinhos do território cartaginês, que os latinos passaram a chamar de numidae. Os fatos que ele relata dizem respeito a combates de Cartago contra esses povos, em razão desses terem se aproveitado do enfraquecimento do controle cartaginês causado pelos ataques dos gregos siciliotas na Berberia oriental. Neste relato aparecem dois nomes específicos: os zufônes (XX, 38, 2) e os asfodélodes (XX, 57, 5). Os primeiros habitavam a Dorsal tunisiana, isto é, o centro da Berberia oriental (Camps 1960: 36). Já os asfodélodes Gsell situa no nordeste da Argélia, parte ocidental da Berberia oriental (Gsell 1918, vol. III: 50-51 e 1913, vol. I: 303-304). Diodoro (XX, 57) refere-se a eles mencionando que se pareciam com os etíopes, pela cor de suas peles. De fato, pesquisas arqueológicas têm revelado que, desde o período Capsiense (7.000 a 4.500 a.C.), elementos com afinitudes negróides participaram do povoamento da África. Somente com o estudo mais preciso dos esqueletos encontrados em sepulturas megalíticas, púnicas e romanas, no Norte da África, será possível afirmar com mais certeza acerca da proporção de elementos humanos do tipo negróide nesta região, na Antigüidade, como o texto de Diodoro dá a entender.
Na tradução grega, copiada por Políbio (III, 33, 15), de uma inscrição bilíngüe, grega/púnica, que o general cartaginês Aníbal teria dedicado no templo de Hera Lacínia, situado a poucos quilômetros de Crotona, na costa meridional da Itália, os cartagineses apresentam os povos africanos, isto é, os grupos indígenas, que faziam parte de sua cavalaria em 219-218 a.C., por ocasião da IIª Guerra Púnica: os lergétes e, entre os númidas, os massilos, os macões, os masesilos e os maurúsios. Dois outros grupos númidas, os areácidas e os micatanos, nos são apresentados por Diodoro da Sicília (XXVI, 23) quando este autor trata da Guerra dos Mercenários, ocorrida após a Iª Guerra Púnica. Os estudiosos modernos ainda não encontraram os territórios de todos esses grupos (Gsell 1927, vol.V: 85; Jodin 1987: 214). Os micatanos, no entanto, são mencionados por Diodoro como participantes da rebelião contra o poder cartaginês na Berberia, e os areácidas teriam colocado um dos seus chefes à disposição de Aníbal, enquanto o general cartaginês se encontrava em Hadrumeto, em 203 a.C. (Apiano, Lib., 33; Gsell 1918, vol.III: 251). A partir desse momento, nos encontramos nas regiões onde se formarão os "reinos" indígenas dos númidas e dos mouros.
Como explicitado desde o início, já em Heródoto (IV, 181, 186-188, 190-192) temos a divisão dos indígenas entre pastores: nomades, e cultivadores: agroteres. Apesar de ter sido empregado com este mesmo sentido, isto é, o de pastores, por outros autores como Hecateu e Píndaro, o termo nômade tornou-se também um nome próprio: numidae. Políbio (I, 19. 3; I, 31. 2; I, 65. 3; III, 15) usa a palavra nomades, como também autores gregos posteriores (Diodoro da Sicília, XIII, 80, 3; XX, 38 - 39; etc.). Os autores latinos utilizam o termo numidae (Salústio, Jugurthinum, V, 1 e 4; VI, 3; Tito Lívio, XXI, 22, 3; XXI, 29, 1; etc.). Deste modo, com exceção dos habitantes do território cartaginês, depois província Africa, que eram denominados libyes e afri, todos os outros indígenas do Norte da África foram chamados de nomades ou numidae (Diodoro da Sicília XX, 55, 4; Salústio, Jugurthinum, XCI, 4 e 6) (Gsell 1927, vol.V: 118), mas sem o sentido cabal de nômades, dessa maneira se diferenciando dos grupos indígenas apresentados por Heródoto, com exceção dos zauéces, maxies e gizantes, pois estes últimos habitariam igualmente a área de atuação cartaginesa e seriam cultivadores.
Entretanto, o nome "númida" acabou tendo um sentido ainda mais restrito. Os getulos, habitantes do interior, nas franjas do deserto, e os mouros, do norte da Berberia ocidental, foram diferenciados dos númidas nos textos do próprio Salústio (Jugurthinum, XIX, 4-5, 7; LXXX, 1 e 6) e de Diodoro da Sicília (XIII, 80, 3), mas também em outros autores (Justino, XIX, 2, 4; Estrabão, II, 5, 33). Os númidas, então, são os habitantes da costa situada entre o reino mouro e a província cartaginesa, ou seja, entre a Berberia ocidental e a Berberia oriental, e a Numídia (Numidia) corresponde, de acordo com as oscilações das fronteiras, a essa região. Pompônio Mela (I, 30) estendia a Numídia do Moulouia até o el-Kebir, isto é do Molochath até o Ampsaga. Sendo que em uma segunda passagem (I, 33) o limite oriental deixa de ser o rio Ampsaga para ser o promontório Metagônita (atual Cabo Bougaroun, na Argélia).
De fato, acabamos de mencionar rapidamente os três grandes grupos indígenas que serão tanto os mais citados quanto os mais conhecidos desde a Antigüidade. Já nesse período eles foram reconhecidos como super-grupos ou "confederações" maiores, que incluíam diversos grupos indígenas menores na sua composição. São os númidas, situados ao longo da Berberia central e da oriental; os mouros, localizados na Berberia ocidental; e os getulos. Estes últimos, tratados mais adiante, ocupavam a região meridional da Berberia ocidental e central. Um quarto povo, menos citado, os garamantes, já mencionados, são um caso à parte, visto que sua área de atuação está situada para além dos limites meridionais e orientais da Berberia, pois habitavam a região estépica ao sul, em sua porção oriental, isto é, na continuação latitudinal dos getulos, mais especificamente do Fezzan tunisiano, na Berberia central, até as Sirtes.
Acabamos de ver que, ao longo dos séculos, estes nomes de povos tiveram acepções diferentes. Os gregos por muito tempo chamaram de númidas todos os africanos não súditos de Cartago, reservando o nome líbios para os indígenas que habitavam o território submetido. No entanto, com respeito às populações líbicas mais ocidentais, atualmente, nós as chamamos de mouros, mais do que de númidas. Essa distinção só se tornou definitiva quando os romanos descobriram a existência de um "reino" indígena no atual Marrocos, isto é, na Berberia ocidental, o que ocorreu na época de César (Bellum Africum, III, 1; VI, 3; VII, 5; LXXXIII, 3). Artemidoro, no século II a.C., considerava ainda como númidas os líbios que habitavam as imediações das Colunas de Héracles (atual Estreito de Gibraltar) (Estrabão, III, V, 5). Entretanto, talvez seja possível perceber que a distinção entre númidas e mouros fosse mais antiga e local se admitirmos, como se faz geralmente, que o nome mouro não fosse nada além do que uma simples designação geográfica de origem fenícia. De fato, nos tempos de Aníbal, o uso desse nome era corrente; pois, como acabamos de ver, ele figurou na inscrição bilíngüe que o general cartaginês gravou na Itália, em Crotona, sob a forma grega de maurúsio (Políbio, III, 33, 15). A partir do século XVII, passou-se a explicar a origem do nome mouro por uma contração de um termo semítico: mahaurim, que traduziria "os ocidentais" (Camps 1960: 148). Os fenícios teriam dessa maneira qualificado as populações da Berberia ocidental (Gsell 1913, vol.I: 335). No entanto, G. Camps (1960: 149) acredita que esta teoria não explica, linguisticamente, a existência de uma sibilante no nome grego maurúsio, mais antigo do que a forma latina mauri (mouros).
Por outro lado, St. Gsell (1927, vol.V: 89) afirma não haver razão contumaz o suficiente para podermos rejeitar a asserção de Estrabão (XVII, 3, 2), que atribuiu uma origem indígena para o nome mauri. Plínio, o velho, (V, 17) escreve que, entre os grupos indígenas da Mauritânia Tingitânia (oeste da Berberia ocidental), o principal era o dos mauri, isto é, a gens mauri. No entanto, de acordo com este autor (V, 17) guerras haviam reduzido esse grupo a poucos clãs, e o nome da província romana de Mauritânia derivaria desse grupo. Para tentar apoiar esses textos, alguns autores passaram, então, a procurar uma origem berbere para o nome dos mouros. No entanto, as explicações até hoje levantadas não foram admitidas pela crítica acadêmica.
De qualquer forma, podemos afirmar com segurança que os mouros ou maurúsios originais, os que foram citados por Plínio, o velho, enquanto grupo indígena, habitavam a região da Berberia ocidental. Deste modo, a leste dos mouros, e até a vizinhança de Cartago, viviam os númidas.
Mencionamos acima que, na época romana, o nome númida foi usado para designar somente alguns grupos indígenas da Argélia e da Tunísia. Pois, com o tempo, os mouros haviam dado o seu nome para todas as populações da Argélia até o oued el-Kebir (Ampsaga), em seguida à cessão da Numídia ocidental (atual Argélia), antiga região da Masesília, a Boco, "rei" dos mouros, no final do século II a.C. (Camps 1960: 148). A Masesília (Masaesylie) é designada como a região do grupo indígena masesilo, considerado númida por Políbio. Permanece corrente durante um certo período enquanto designação geográfica (Estrabão, XVII, 3, 6, 9, 12, 20; Plínio, o velho, X, 22) (Gsell 1927, vol.V: 86), mas à época romana cai em desuso. Plínio, o velho, (V, 17) assinala que o grupo indígena dos masesilos havia desaparecido em meio às guerras travadas contra os mouros, seus vizinhos na Tingitânia e que seu território havia sido ocupado pelos getulos. Para Gsell significa que os masesilos saíram do Marrocos para conquistar a Argélia. Ali criaram o "reino" do masesilos (Gsell 1927, vol.V: 86).
Por outro lado, o nome dos mouros não cessa de se estender por toda a Berberia até o final dos tempos antigos, terminando por adquirir um sentido particular: o de berberes não romanizados. Na Idade Média, a mesma palavra vai servir para designar todos os muçulmanos do Ocidente (Raven, 1993: xxvi-xxvii).
Assim, admitindo a localização original na Berberia ocidental para os mouros, os númidas foram aqueles que ocuparam, entre o território desses e o de Cartago, a parte oriental da Berberia ocidental, a Berberia central e uma pequena porção, a oeste, da Berberia oriental. No final do século II a.C., com o avanço do super-grupo mouro até o Ampsaga (el-Kebir), podemos visualizar duas hipóteses: estes tomaram o lugar dos númidas, empurrando-os em direção oriental, ou co-existiram ambos os super-grupos; pois, mesmo estando correta a afirmação da existência original de um pequeno grupo indígena denominado númida, este termo passa a denominar di-versos grupos distintos de uma mesma vasta região desde um período muito recuado (século V a.C., se pensarmos nos nomades de Heródoto e século III-II a.C., se pensarmos em Políbio e sua fontes).
A relação dos grupos indígenas atuando nos exércitos de Cartago, já mencionada, que Políbio copiou de uma inscrição bilíngüe cartaginesa, qualifica uma série de grupos indígenas como númidas – Diodoro da Sicília faz o mesmo ao relatar a Guerra dos Mercenários. Retomando, são eles: os já citados masesilos, os massilos, os maurúsios – ou seja, os mouros –, os macões, os areácidas, e os micatanos.
Destes povos, foram os três primeiros que formaram os grupos maiores dos númidas e dos mouros. No século III a.C., os outros númidas, de maneira geral, eram "súditos" dos masesilos e dos massilos – com exceção dos maurúsios/mouros (Gsell 1927, vol.V: 110). De fato, os masesilos e os massilos são denominados "reis" (rex, basileus) dos númidas nas fontes escritas (Tito Lívio, XXIV, 48, 2; Políbio, XXXVI, 16, 1; Salústio, Jugurthinum, V, 4; Justino, XXXIII, 1; etc.). Isto é, são denominados "reis" dos outros grupos indígenas da região. Alguns dos nomes desses grupos já foram apresentados aqui: zufônes, asfodélodes, macões, areácidas e micatanos. Após a queda do "reino" masesilo frente aos massilos, estes últimos estendem seu poder de Thabraca (atual Tabarqa) – na Argélia – até o Soumam ou Moulouia – no Marrocos. Esta região é, então, a já mencionada Numídia (Gsell 1927, vol.V: 108). Como vimos acima os massilos primeiro perdem a parte ocidental dessa Numídia – do Moulouia (antigo Molochath) ou do oued Soumam até o el-Kebir (antigo Ampsaga) –, anexada ao "reino" mouro de Boco, no final do século II a.C., e, posteriormente, perdem o restante, a parte oriental, na segunda metade do século I a.C., com a criação da província romana Africa Nova.
Vimos que Plínio, o velho, (V, 17) assinala a presença do grupo indígena masesilo (masaesyli) perto dos mouros, na Berberia ocidental, região do Estreito de Gibraltar. Essa localização tão para o oeste não é aceita por todos. No entanto, St. Gsell (1927, vol.V: 86) e J. Desanges (1980: 145-146) acreditam ser possível confiar na informação do autor latino, pois foi encontrada na região de Anjra (interior de Tétouan, no Estreito de Gibraltar), mais precisamente em Jarda, uma inscrição do final do século II – começo do século III d.C., na qual consta uma menção aos masaisuli. Esta inscrição, redigida em nome de um morto, Tacneidis, por seus herdeiros, apresenta-o como sendo um masesilo: d(is) m(anibus) s(acrum) / Tacneidis / Securi (filius) / ex Masaiculis vixit / annos xxxv. Acreditamos ser possível que os masesilos tivessem por habitat original a região mais ocidental da Berberia e que, com as movimentações costumeiras dos semi-nômades, acabaram por se fixar na parte ocidental da região que podemos generalizar como sendo dos númidas: entre o Moulouia ou Soumam e o Cabo Bougaroun/ Ampsaga.
Com relação aos massilos, Isidoro de Sevilha (Etym., IX, 2, 123) menciona, na região da Berberia ocidental, entre o maciço do Atlas e o mítico Jardim das Hespérides (no Estreito de Gibraltar), uma cidade denominada Massília, de onde os mas-silos haviam tirado seu nome (Carcopino 1943: 286). Há uma fonte (Hegesianax 11, Fragm. hist. Graec., III: 70) que assinala tanto a existência do grupo indígena massilo quanto de seu "rei", já na Iª Guerra Púnica. Plínio, o velho, (V, 30) também os identifica primeiramente enquanto grupo indígena. Este grupo teria crescido e englobado outros grupos, de maneira análoga aos masesilos e aos mouros. J. Carcopino (1943: 285), seguindo St. Gsell (1918, vol.III: 175-177), os situa entre o Cabo Bougaroun e os limites do território cartaginês. Isto é, na fronteira entre a Berberia central e a oriental, portanto, no extremo oposto do Estreito de Gibraltar. Massinissa foi o mais famoso representante do povo massilo. J. Desanges propõe como centro do "reino" massilo a região do djebel Fortas, ao sul da cidade argelina de Constantina, antiga Cirta (Desanges 1980: 335). O Medracen, grande mausoléu númida entre Aïn Yagout e El Mader, na região de Batna (sudoeste de Constantina), área dos númidas massilos, possui uma datação de 330 a.C.. Foram encontrados diversos documentos epigráficos que assinalam o cognome Mas(s)ul nessa região.
Entre os poetas latinos registra-se o adjetivo massylus (por vezes massylius ou massyleus) para aplicá-lo, de maneira geral, aos homens e às coisas da África (Virgílio, Eneida, IV, 132 e 483; Lucano; Sílio Itálico, XVI, 258 apud Gsell 1927, vol.V: 87).
A palavra númida, de construção ternária, possui um aspecto semítico, devido talvez aos diferentes sistemas de transcrição. Duas inscrições bilíngües, latino-púnica e latino-líbica, nos deram dois nomes diferentes correspondentes ao numida. Na primeira, descoberta em Guelaâ-bou-Sba, o texto neo-púnico traz o nome de Tisdat, filho de Metatis, filho de Gautal, o NGRY....; o texto latino diz: Rufus, Metatis filius Num(ida?). Se admitirmos o desenvolvimento Num(ida), somos tentados a dar o mesmo significado para o termo púnico "NGRY". Ora, este étnico é conhecido em cerca de meia dúzia de inscrições líbicas sob a forma "NGRH". Estas inscrições estão situadas entre Duvivier e Souk-Ahras, isto é, em uma região essencialmente númida, entre os Alpes Numidicae e Thubursicu Numidarum (próxima a Collo, antiga Chullu, na Argélia).
No entanto, quando examinamos a outra inscrição bilíngüe (R.I.L., n.85 apud Camps 1960: 150), latina-líbica, o ceticismo quanto a correlação númida-NGRH surge. Descoberta em Dar Tabela, perto de Ouchtata, ela apresenta para a palavra latina N(umida), a correspondente líbica "NBIBH", que é bem diferente da "NGRH" vista acima. O étnico "NBIBH" é bastante conhecido a partir de outros documentos encontrados na localidade de La Cheffia (na fronteira entre a Berberia central e a oriental), onde aparece em 15 inscrições (analisadas adiante, pois o termo está ligado a um grupo indígena específico, os misiciri).
Assim é que não cremos ser possível estabelecer ainda qual a hipótese mais precisa. G. Camps (1960: 152) pensa que mesmo não se conhecendo nem o nome púnico nem o líbico que corresponda ao latino numida, não haveria razão para acreditarmos que este último tenha sido derivado do nomades grego. Se os romanos tivessem se apossado dessa nomenclatura a partir do grego eles a teriam integrado ao sistema imparisilábico da 3ª declinação (idem: 153). Se os latinos chamaram de numidae os mesmos povos que os gregos, ambos em razão de um trocadilho, que os batizava de nômades, foi pelo fato que tanto um como o outro tiveram um modelo norteafricano, que lhes pareceu mais berbere do que púnico, apesar de sua construção ternária. G. Camps lembra que são conhecidos, na onomástica líbica, nomes que começam com NM (R.I.L., pr.XX apud Camps 1960: 152).
2ª Parte -->
A verdadeira face de Sêneca
Há 13 anos