Sozinha no poder
Esse era o clima, em 1336 a.C., quando Akhenaton morreu provavelmente de causas naturais, aos 34 anos – a média de vida dos egípcios daquela época, mesmo entre a elite, era de apenas 35 anos. Nessa época, as imagens de Nefertiti mostram-na usando paramentos típicos de faraó, como coroa e bastões. Para a maioria dos especialistas, o fato sugere que ela teria assumido o trono do Egito, primeiro ao lado do marido e, depois da morte Akhenaton, sucedendo-o. “Embora o assunto permaneça controverso atualmente a opinião de que ela tenha governado como rainha única é cada vez mais aceita”, diz Antonio Brancaglion.
Gravações em pedra encontradas em escavações no século 19 em Amarna mostram que, após a morte de Akhenaton, o Egito foi governado por um (ou uma) faraó de nome Nefernefruaton – que seria, na verdade, Nefertiti. A rainha teria governado como co-regente de Akhenaton após o 13º ano de seu reinado – quando o nome “Nefertiti” desaparece das inscrições em Amarna.
Para Zahi Hawass, secretário-geral do Conselho Supremo de Antigüidades Egípcias, não restam dúvidas sobre o poder acumulado por Nefertiti após a morte de Akhenaton. “As imagens de Amarna mostram a rainha sozinha, liderando procissões religiosas e até à frente de exércitos, posições reservadas exclusivamente aos faraós”, diz Hawass. Um dos fatos que reforça a hipótese de Nefertiti ter chegado ao mais alto cargo no Egito é que Nefernefruaton é justamente uma variação mais longa de seu nome. Além disso, vários documentos sugerem que o sucessor de Akhenaton tenha sido uma mulher.
Por outro lado, críticos à tese de que Nefertiti tenha governado sozinha o Egito apontam o fato de que o sucessor de Akhenaton tenha revogado quase tudo que o faraó fez durante seu reinado – o culto a Aton, por exemplo, foi extinto e os antigos deuses retomados menos de cinco anos após sua morte – para sustentar a hipótese de que o sucessor tenha sido outra pessoa. Afinal, por que Nefertiti abandonaria a religião do marido?
Anna Cristina Ferreira de Souza tem algumas hipóteses. “Akhenaton deixou o Egito em crise e após sua morte, vários setores da sociedade se revoltaram contra o trono. O retorno ao culto a Amon-Ra deve ter sido uma forma que a nova faraó encontrou para contar com o apoio do maior número possível de pessoas e pacificar o país”, diz. Segundo a especialista, isso justificaria o fato de Nefertiti ter trocado seu nome e tentado romper os vínculos com o antigo regime. “Foi uma decisão importante, tomada por uma mulher que tinha exata noção de seu papel na política do Estado.” O egiptólogo Antonio Brancaglion, concorda que a motivação de Nefertiti deve ter sido política. “Ela provavelmente percebeu que a nova religião estava levando o Egito ao colapso”, afirma.
Apesar disso, Nefertiti não conseguiu deter a crise religiosa e social que levou o Egito a um período de instabilidade política. Depois de apenas três anos de poder, ela teria morrido em situação nunca esclarecida. O Egito passou a ser governado pelo jovem Tutancâmon, que assumiu com cerca de 9 ou 10 anos e morreu assassinado aos 18 anos. Para quem acredita que Nefertiti terminou seus dias como a poderosa rainha do Egito é difícil aceitar que seu corpo jamais tenha sido localizado – embora uma especialista americana tenha afirmado, em 2003, que a achara. Para explicar o desaparecimento, no entanto, é preciso lembrar que durante o governo de Tutancâmon, Amarna – provável local do sepultamento da rainha – foi abandonada. Os crentes de Aton foram perseguidos e a maioria dos templos construídos por Akhenaton e Nefertiti depredados. Os rostos dos soberanos foram raspados das imagens esculpidas em pedra. É possível que, nessa época, a tumba da rainha tenha sido violada.
Silêncio eterno
Se Nefertiti não reinou como faraó, a outra hipótese é que ela tenha morrido no 14º ano de reinado do marido, quando seu nome desapareceu dos documentos oficiais. “Acredito que a esposa de Akhenaton foi enterrada na tumba real em Amarna, como previsto desde a época da construção da cidade”, afirma Joyce Tyldesley, que estuda as ruínas de Amarna há mais de 20 anos. “Essa tumba foi saqueada na Antigüidade, e novamente no século 19. Muito pouco foi recuperado dela. Mas há uma chance de que a múmia tenha sido resgatada quando Amarna foi abandonada. Nesse caso, ela poderia estar numa tumba do Vale dos Reis, em Tebas.”
Embora o período amarniano seja um dos mais estudados do Egito antigo (há mais de 2 mil livros publicados sobre a época), não há ponto final quando o assunto é Nefertiti. “Desde a descoberta de seu famoso busto, exposto hoje no Museu de Berlim, ela invadiu nossa imaginação”, afirma a historiadora Deborah Vess. “Sua beleza e o enorme poder que parece ter tido instigaram diferentes teses sobre sua vida e seu real papel na história do Egito.”
“Não sabemos quase nada sobre a personalidade dela”, diz Julio Gralha. “Alguns pesquisadores a tratam como mãe devotada e esposa carinhosa, agradável ao público. Outros a tem como uma mulher ambiciosa, poderosa, capaz de matar para ficar no poder.” Há quem defenda a tese de que Nefertiti chegou a matar Kiya, a segunda esposa de Akhenaton e mãe de Tutancâmon, só porque ela teria dado ao faraó algo que a rainha nunca conseguiu dar: um filho homem. Outros acham que foi a própria Nefertiti a cabeça da revolução religiosa que dividiu seu país e o levou à beira do colapso. Há ainda uma versão da história que afirma que Nefertiti não era o faraó sucessor de seu marido – e, sim, sua assassina.
Talvez as respostas para esses e outros enigmas só surjam quando o grande depósito de talatats encontrado em Amarna no século 19 for inteiramente decifrado. O que ainda pode levar décadas. Talvez não apareçam nunca e, então, Nefertiti terá levado seus segredos para a eternidade.
Crescendo e aparecendo
Gravações em Amarna revelam que a importância de Nefertiti aumentou com o tempo
À SOMBRA DO REI
Quem disse que tamanho não é documento? Para a arte egípcia, é, sim. Nefertiti é o maior exemplo. No começo do reinado de seu marido, a rainha aparece em tamanho desproporcional ao dele – o que era comum na época, por causa da maior importância política e religiosa do faraó. Também era comum a arte ter uma gama limitada de cores: vermelho, amarelo, azul, verde, preto e branco – eram as únicas que os egípcios conseguiam obter.
OMBRO A OMBRO
Com o passar do tempo, a imagem de Nefertiti vai aumentando em relação à do marido. Até que ambos atingem a mesma altura. Sinal claro de que a importância da rainha também cresceu e atingiu patamares iguais à de Akhenaton. O rei, aliás, não alterou somente a religião de seu país. Ele mexeu em toda a estrutura vigente, inclusive na arte. Durante o reinado de Akhenaton, as linhas curvas passaram a ser valorizadas. Tudo para lembrar o círculo solar do rei Aton.
1. Disco solar
As imagens de Amarna mostram o deus Aton representado pelo círculo solar. Ele geralmente está localizado no centro do desenho, irradiando raios luminosos sobre as cabeças do casal real. Como o deus único agora era o Sol, os cultos se davam em lugares abertos, à luz do dia. A nova religião também era mais branda com os fiéis: assim que morrem, eles se livram automaticamente dos pecados, coisa que não acontecia nos outros cultos.
2. Nefertiti
A rainha Nefertiti foi retratada inúmeras vezes em situações de família ou em rituais ao lado do rei. Também aparece – mais vezes do que o próprio faraó – oficiando rituais a Aton sozinha. Há na arte de Amarna ainda relevos que mostram seu papel importante na política: Nefertiti aparece golpeando inimigos ou na presença de cativos, atitudes que até então eram relacionadas apenas ao faraó.
3. Akhenaton
Busto do Faraó Akhenaton, no Museu Egípcio, Cairo.
Akhenaton comumente era retratado com cintura de mulher, coxas grossas e seios, enquanto Nefertiti por vezes aparecia com feições masculinas – figuras bastante andróginas. Isso intrigava os pesquisadores, que achavam que o faraó tinha uma doença, a síndrome de Frölich, uma disfunção glandular que deixava o portador infértil. Só depois percebeu-se que, como seres masculinos e femininos, o casal real se assemelhava ao deus-sol.
4. Crianças
Pela primeira vez na história do Egito – e talvez de todo o Mundo Antigo – as cenas cotidianas da família real foram expostas durante o período amarniano. O casal de soberanos aparece se beijando em frente às filhas, pegando-as no colo, dando comida a elas, fazendo-lhes carinho. Nunca tanta intimidade havia sido mostrada. As crianças aparecem brincando ou chacoalhando instrumentos musicais em cultos a Aton.
Rosto mutilado
Se a vida de Nefertiti é permeada por incertezas, após sua morte ao menos uma certeza há: a de que ela e seu marido incomodaram. E muito. Anos após a morte do casal real, já na 19ª dinastia egípcia, a população não o perdoou e destruiu a antiga cidade Akhetaton e quase todas as imagens do casal. Acusada de herege e de ter renegado os antigos deuses egípcios, Nefertiti teve os olhos de suas imagens riscados – para que ela não pudesse enxergar o paraíso após a morte.
O rei está morto
Ainda existe polêmica sobre a sucessão de Akhenaton
Está longe de ser consenso entre os historiadores que Nefertiti tenha assumido o trono do Egito como faraó. O que não faltam são teorias sobre a sucessão de Akhenaton. Todas elas tentam decifrar quem seria o faraó Nefernefruaton, também conhecido por Smenkhare, que reinou por um breve período, entre a morte de Akhenaton, em 1336 a.C. e a chegada ao trono de Tutancâmon, em 1332 a.C.. Além da teoria que aponta que Nefernefruaton seria Nefertiti, há uma linha de pesquisadores que defende que Smenkhare seria filho de Nefertiti e Akhenaton (embora as imagens egípcias só mostrem o casal rodeado por cinco filhas). “Ele teria governado como co-regente do pai até poucos meses antes de sua morte”, afirma Lanny Bell, historiador da Universidade de Brown, nos Estados Unidos. “Para alguns, Smenkhare teria sobrevivido à morte de Akhenaton e governado por quatro anos antes de morrer e ser substituído no trono por seu irmão Tutancâmon.” Há ainda egiptólogos que afirmam que, após a morte de Akhenaton, Nefertiti teria pedido ajuda a um rei inimigo, do reino de Hatti (dos hititas). Ela temia que, como Tutancâmon tinha apenas 5 anos, uma confusão se instalasse no Egito pelo trono. O rei dos hititas teria mandado um filho seu, que teria se casado com Meritaton, a filha de Nefertiti, e assumido como o faraó Smenkhare. “É possível que o príncipe hitita tenha governado por um tempo, mas, ao tomar atitudes que desagradavam Nefertiti, teria sido morto”, diz Bell. A própria rainha teria assumido o lugar do genro, com o mesmo nome dele. De acordo com o historiador americano, a confusão toda é provocada pelo fato de os egípcios costumarem proteger seus nomes. “Todos os indivíduos tinham seu nome secreto e seu nome público. Mas, no caso dos faraós, o nome público não era o nome real. Por isso, eles possuíam até três nomes”, diz. No caso do sucessor de Akhenaton, outro fato que gera controvérsia é ele ter dois nomes públicos, Smenkhare e Nefernefruaton.
Múmia desaparecida
Pesquisadora americana disse, em 2003, ter identificado a múmiade Nefertiti. Exames de DNA realizados há dois meses refutam a teoria
Um dos maiores mistérios da tão misteriosa vida de Nefertiti é o paradeiro de sua múmia. Uma egiptóloga americana, Joann Fletcher, especialista no estudo de perucas egípcias (parece bobagem, mas os apliques de cabelo são uma forma importante de identificar as múmias, já que resistem bem à decomposição), fez o maior barulho entre os estudiosos em setembro de 2003 ao afirmar que havia encontrado a tumba da rainha. Acabou desmentida em alto e bom som. Com uma equipe do canal de televisão Discovery a tiracolo, Joann Fletcher apontou uma tumba do Vale dos Reis, identificada como KV35, como a que guardava o corpo de Nefertiti. De acordo com ela, traduções de textos e algumas imagens dos três corpos guardados na KV35 a fizeram pensar que Nefertiti estava lá. Além disso, a KV35 guarda corpos de tumbas saqueadas – situação da antiga tumba da esposa de Akhenaton. Outra pista apontada pela especialista em cabelos da Antigüidade era justamente a peruca usada por Nefertiti – sim, a rainha era careca, uma forma de se manter longe dos piolhos. Uma peruca parecida com as usadas pelas mulheres da realeza foi encontrada ao lado de uma múmia mutilada em 1898, pelo pesquisador francês Victor Loret. E uma das três múmias da KV35 era exatamente a mutilada. Segundo Joann Fletcher, o fato também seria um indício de que aquela era Nefertiti: a múmia da rainha teria tido seu rosto destruído como vingança pelos seguidores do deus Amon-Ra. Para os egípcios, a destruição do rosto é um sacrilégio e significa, além do fim da beleza, a proibição do acesso pós-morte. Fletcher visitou duas vezes a tumba KV35. Da segunda vez, levou consigo uma equipe de especialistas em radiografia, para tentar provar sua teoria. Para as câmeras da TV, Joann mostrou os dois furos em uma das orelhas da múmia, hábito das mulheres da realeza. A pesquisadora saiu da KV35 com a certeza de que a múmia encontrada era Nefertiti. A comunidade mundial de egiptólogos se manifestou prontamente. Uma das respostas mais contundentes veio de Zahi Hawass, secretário-geral do Conselho Supremo de Antigüidades Egípcias – ele proibiu o acesso de Joann Fletcher ao patrimônio histórico do Egito. E justificou num artigo no jornal Al-Ahram: a pesquisadora havia descumprido o acordo de comunicar qualquer descoberta à organização egípcia em primeiro lugar. “Indo primeiro à imprensa com o que ela considerava uma grande descoberta, a doutora Fletcher quebrou o acordo”, escreveu. Para ele, a americana não se baseou em evidências e provas, e sim em semelhanças faciais. Hawass foi além: encomendou um raro teste de DNA na múmia atribuída à rainha Nefertiti. O resultado foi devastador, ao menos para a tese de Joann Fletcher. O corpo mutilado da KV35 era de um homem. Foi um vexame.
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