quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Civilização Swahili

A Civilização Swahili (do século XIII ao século XV)

Esta riqueza e estes contatos influenciaram o desenvolvimento econômico, social e cultural da África oriental. Por um lado, as aldeias transformaram-se em cidades. Por outro, formou-se na sociedade swahili um grupo influente, que começou a competir pelo poder com a antiga nobreza, cujos domínios e influência eram associados a funções sociais tradicionais. Para reforçar sua posição, o novo grupo tinha necessidade de uma nova ideologia, o islamismo, conhecido através de contatos com árabes e persas. As circunstâncias históricas permitiram que o Islã se difundisse na África oriental, partindo do princípio que, em caso de necessidade, as pessoas adaptam suas necessidades a uma realidade estrangeira, porém já existente, antes de, analogamente, criar a sua própria. As condições concretas dessa difusão não são conhecidas; pode-se, no entanto, afirmar que o Islã não foi imposto à força, como durante a conquista árabe. Também não houve proselitismo em favor da religião muçulmana. É possível, então, pensar a conversão ao islamismo como voluntária, exprimindo a necessidade profunda da sociedade em adotar uma nova ideologia.

A penetração do Islã começou, aparentemente, entre o fim do século VII e o início do VIII. No século X, al-Mas'üdi mencionou a presença de muçulmanos, que falavam uma língua africana, na ilha de Kambala. Atribui-se a essa época a difusão do Islã pelas ilhas da costa da África oriental: no século XIII, a nova religião começou a se espalhar pelo próprio litoral. Era, evidentemente, diferente da religião muçulmana dos países árabes. Provavelmente, como demonstrou J. S. Trimingham a respeito de período mais recente, o que impor- tava, no início, era simplesmente ser considerado muçulmano, e esta religião coexistia com os cultos tradicionais. Este fato é por si mesmo muito importante, pois ilustra o enfraquecimento e o desaparecimento de velhos laços sociais, que cederam lugar a novos. Além disso, pode-se supor que o Islã também era traço de realce na diferenciação com os outros africanos não-muçulmanos. No início, o Islã marcava essencialmente as aparências, mas com o tempo sua influência tornou-se mais profunda, à medida que o número de adeptos aumentava. A prova externa destas mudanças foi o crescimento do número de mesquitas.

O progresso e difusão do Islã

O começo da expansão do Islã deve, sem dúvida, remontar às últimas décadas do século XII, e seu desenvolvimento ocorreu nos séculos XIV e XV. Assim, em 1331-1332, Ibn Battüta descreveu Mogadíscio como uma cidade bastante islamizada. Dos habitantes de Kilwa acrescentou ainda que "suas maiores qualidades são a fé e a justiça"; seu sultão recompensava os devotos e os nobres. Sabemos da existência de mesquitas nesta época em Mogadíscio, Gedi, Kaole, Kilwa, Sanjo Magoma etc. A conversão ao Islã representava, aparentemente, a passagem a uma nova etapa, inevitavelmente a outras formas de conduta e de vida. A manifestação concreta da mudança consistia na adoção de vestimentas, nomes e títulos muçulmanos. Este último ponto tinha importância particular na tomada de consciência dos novos laços sociais, embora tenha sido um processo gradual, que passou por uma fase de coexistência dos títulos antigos (africanos) e novos (muçulmanos) - por exemplo, o de mfalme e sultão -, resultando, por fim, no desaparecimento dos primeiros. Também é possível supor que, na prática, as prescrições e proibições do Islã não foram adotadas em sua totalidade, e que os costumes e ritos ligados aos cultos tradicionais perpetuaram-se.

Os primeiros a abraçar o islã foram, provavelmente, os ricos comerciantes, seguidos pela antiga nobreza e, finalmente, por certas camadas populares, ou seja, membros da comunidade que ambicionavam chegar ao nível de seus opulentos correligionários. A aparição e difusão do Islã levaram à adoção, nesta área da África, de traços de civilização aplicáveis ao contexto local. Dando crédito a Ibn Battüta, que menciona cádis em Mogadíscio e Kilwa, pode-se concluir que a sociedade swahili começou a aplicar alguns elementos, mas não todos, do sistema jurídico muçulmano. A introdução e a difusão do Islã num clima de intensas atividades comerciais explicam a utilização de muitos termos da língua árabe, principalmente no comércio, na religião e na justiça. Adotou-se para a língua kiswahili, pelas necessidades do comércio e da religião, para os registros dos ritos que deveriam ser observados, é para a codificação dos direitos e privilégios das diversas camadas da sociedade swahili, uma escrita baseada na grafia árabe. Como demonstrou V. M. Misiugin, é preciso saber kiswahili para ler a escrita, isto é, ela só pode ter sido criada pelos Swahili. A criação remontaria, segundo o próprio Misiugin, a um período entre o século X e o XIII.

Urbanismo e arquitetura


A Grande Mesquita de Kilwa Kisiwani.

Outra conseqüência da difusão do Islã, além do surgimento de mesquitas no território swahili, foi o desenvolvimento das construções em pedra. As escavações dirigidas por J. S. Kirkman e G. N. Chittick permitem que comecemos a traçar um quadro geral da evolução da arquitetura nas ilhas e na costa da África oriental. Seu início remonta ao século XII em Gedi, Zanzibar e Kilwa. O primeiro período caracteriza-se por uma técnica de construção que consistia em assentar blocos de coral com argila vermelha. O único monumento da época, mencionado nas fontes escritas, é a grande mesquita de Kilwa, infelizmente reconstruída várias vezes, nada restando da obra original. Outro vestígio do século XII, que traz a data de 1107, é uma inscrição da mesquita de Kizimkazi em Zanzibar, que hoje orna uma mesquita do século XVIII. Do século XIII, conhecemos três mesquitas em Kisimani Mafia, a parte norte da grande mesquita de Kilwa, uma pequena mesquita na ilha de Sanjo ya Kati, dois minaretes próximos a Mogadíscio - um tem a data de 1238 -, e, no mihrãb da mesquita de Fakhr al-Din, há a indicação do ano de 1269. Houve poucas mudanças nas técnicas de construção em relação ao século anterior: grandes e de forma rudimentar, os blocos de coral, de 25 a 30 cm, eram fixados com cal obtida da calcinação do coral. No século XIV, Kilwa, principal centro comercial, passou por período de grande desenvolvimento na sua arquitetura. Começaram a utilizar pedras de tamanho mais ou menos idêntico, fixando-as com argamassa. Conseguia-se, assim, simplificar ainda mais a construção, apesar de sua qualidade ser natural- mente inferior à do século precedente. As pedras só eram talhadas com cuidado para o acabamento do mihrãb e esquadrias de portas e janelas. Surgiram novos elementos arquitetônicos: cúpulas esféricas ou pontudas, arcos semi-circulares, colunas de pedra, baixos-relevos ornamentais. No entanto, parece: que essas realizações limitaram-se a Kilwa; em outros locais, os tetos continuaram planos. O monumento mais notável da época é o palácio-fortaleza ou centro comercial - de Husuni Kubwa. A menção ao nome do sultão al-Hasan Ibn Sulaymãn II (1310-1333) levou G. N. Chittick a propor o século XIV como data de construção deste edifício, que serviu de modelo para a arquitetura das casas das camadas ricas da população. De modo geral, as habitações tinham face norte ou leste, com pátios adjacentes em frente. A morada comportava vários quartos longos e estreitos. A comprida parede do primeiro deles - provavelmente o vestíbulo - era contígua ao pátio, com uma porta de acesso.Os outros quartos eram paralelos ao primeiro. Seu número variava, mas geralmente havia uma peça principal após o vestíbulo e, em seguida, um dormitório. Nos fundos, à direita, situavam-se os banheiros, ao lado dos quais se encontravam instalações destinadas às abluções. Como não havia janelas, a não ser na fachada voltada para o pátio, os quartos interiores eram sempre escuros. Este tipo de moradia era comum em Gedi, Kisimani Mafia, Kaole e Kilwa. O conjunto de Husuni Kubwa compunha-se, em grande parte, de habitações deste tipo; o resto do terreno era ocupado aparentemente por uma piscina. Este monumento, único na arquitetura da África oriental, é verdadeira obra-prima, apesar de sua finalidade ainda não ter sido esclarecida. Outro monumento notável do século XIV é a grande mesquita de Kilwa, reconstruída nessa época.Durante o século XIV, Kilwa foi coberta de casas de pedra e tornou-se uma grande cidade, mostrando, incontestavelmente, sua crescente opulência. O desenvolvimento da construção prosseguiu na primeira metade do século XV, acompanhado por um aperfeiçoamento das técnicas. Derramava-se argamassa misturada a cascalho num molde, método utilizado até para a construção de cúpulas. As colunas, até então monolíticas, passaram a ser feitas de uma mistura de pedras e argamassa. Manteve-se o tipo básico de casa, que passou, por vezes, a mostrar um ou dois andares. Detalhe característico da época consistia em utilizar vasos esmaltados de porcelana da China ou da Pérsia no corpo da construção, para decorar abóbadas e cúpulas. A casa com uma mesquita dentro dos limites de Makutani é típica da arquitetura da época em Kilwa.No reinado do sultão Sulaymãn Ibn Muhammad al-Mãlik al-'Ãdil (1412-1442), a grande mesquita de Kilwa - uma das obras-primas da arquitetura swahili da África oriental - acabou de ser reconstruída, adquirindo seu aspecto atual. Muitas são as opiniões sobre esta arquitetura. G. S. P. Freeman-Grenville, por exemplo, partindo da semelhança entre a estrutura de certas construções de Kilwa (principalmente o palácio do século XVIII) e das casas comuns de taipa, conclui sobre a origem local, africana, das construções em pedra. Os arqueólogos J. S. Kirkman e G. N. Chittick supõem que os árabes e os persas estejam na origem desta evolução; observam, no entanto, que vários detalhes das construções são incompatíveis com as regras do Islã aplicadas nos países árabes. J. S. Kirkman descobriu na mesquita de Gedi motivos de decoração em forma de pontas de lança, inadmissível na Arábia ou no Irã. G. N. Chittick escreve que"no plano material, e mais especialmente na arquitetura, a população da costa desenvolveu uma civilização original em muitos aspectos, que podemos definir como 'proto-swahili'".

Esta opinião é próxima da de J. E. Sutton e P. S. Garlake:"Por sua estrutura e seu estilo de construção religiosa e civil, por suas técnicas de construção, com suas moldagens em pedra talhada e motivos de decoração, a arquitetura swahili conservou, ao longo dos séculos, tradições originais que a distinguem da dos árabes, persas e de outros países muçulmanos". Eles, no entanto, parecem querer enfatizar a origem não-africana desta arquitetura, seu caráter "não-criador", pois precisam que se trata mais "de obras de mestres pedreiros do que de arquitetos". Apesar de não dispormos da obra de Sutton e Garlake, gostaríamos de observar que o que aparentemente chamam de caráter "não-criador" poderia refletir o esforço consciente dessa arquitetura em adotar certos modelos; se considerarmos, por exemplo, a evolução das técnicas de construção, podemos constatar sua adaptação racional aos materiais da região, que se soube utilizar da melhor maneira possível.

De acordo com as fontes portuguesas, as ruas de Kilwa eram estreitas e ladeadas de casas de taipa, cobertas com ramos de palmeira. Nos bairros de casas de pedra, as ruas também eram estreitas e havia bancos de pedra ao longo das paredes das habitações. A construção mais importante da cidade era o palácio, que provavelmente tinha dois ou até mesmo três andares em algumas partes. As portas das edificações eram de madeira, assim como outros elementos decorativos, de madeira ricamente esculpida. Este tipo de decoração era bem comum em vários pontos do litoral, principalmente em Bagamoyo e Zanzibar. Duarte Barbosa sublinha o alto nível desta arte, o que leva a supor que sua origem recorra a séculos anteriores. Como se sabe, os portugueses se impressionaram com o aspecto das cidades, cujas construções em nada ficavam a dever às de Portugal, e com a riqueza de seus habitantes, a elegância das roupas, de seda ou de algodão, ricamente bordadas em ouro. As mulheres usavam brincos de pedras preciosas e, nos braços e tornozelos, correntinhas e braceletes de ouro e prata.

O alto nível de desenvolvimento da civilização swahili pode ser avaliado pela descoberta, nas escavações, de luminárias de terracota, presumivelmente usadas para iluminar as partes escuras das casas, o que leva a supor que as pessoas tinham o hábito de ler, escrever, fazer contas etc. Também se utilizavam velas. Compunham o mobiliário tapetes e esteiras e, às vezes, tamboretes e camas suntuosas com incrustrações de marfim, madrepérola, prata ou ouro. Na casa dos abastados encontrou-se cerâmica importada: faianças e porcelanas do Iraque, do Irã, da China e também do Egito e da Síria. A cerâmica local era utilizada em geral para a preparação de alimentos, e pela população mais pobre. No período entre os séculos XII e XV, havia dois tipos principais de cerâmica com muitas variantes quanto à forma e à decoração; vasos com base redonda ou pontuda, que se destinavam ao uso sobre o fogo; e vasos largos e pouco profundos, parecidos com tigelas ou pratos fundos, provavelmente utilizados para a alimentação.

As estruturas do poder

Centros de intercâmbio comercial e de difusão do Islã, as cidades swahili da África oriental eram também freqüentemente unidades administrativas, capitais de pequenos Estados dirigidos por dinastias muçulmanas locais. O melhor exemplo desses centros é Kilwa, bem conhecida como sede administrativa de uma dinastia, graças às duas versões de sua Crônica. Segundo esta fonte a dinastia - cujos membros não eram africanos, mas persas - era originária da cidade de Shiraz. Em quase todas as cidades da África oriental existem mitos semelhantes, mas permanece a questão sobre a origem da camada dirigente das cidades swahili, que constituía um grupo social rico e islamizado. A resposta a essa questão seria significativa para se poder determinar se a civilização swahili é africana ou se foi trazida à África por estrangeiros.

Do mito à realidade histórica

Atualmente há duas teorias a respeito de tal matéria. De acordo com a primeira, a civilização que se desenvolveu na costa da África oriental é obra de persas e árabes; eles teriam construído as cidades, introduzido o Islã, difundido sua própria cultura, que seria de nível superior à dos africanos; ou, ao menos, estariam na origem desta evolução, a que teriam dado o primeiro impulso. A população local se atribui papel passivo, então; os recém-chegados teriam se cercado de grande número de empregados domésticos, mulheres, protegidos etc., africanos e leriam sido assimilados mais ou menos rapidamente. Ao invés de se desenvolver, a herança cultural dos africanos teria, aos poucos, se degradado, de forma que, não fossem as contribuições do exterior, todo o desenrolar da história da África teria ocorrido em circuito fechado.

Elaborada no fim do século XIX por J. Strandes, esta teoria baseia-se na filosofia da história de Hegel, segundo a qual todos os povos do mundo se dividem entre os que exercem uma ação histórica, sendo capazes de criar, e os que, fora da história, passivos, incapazes de criar, esperam ser guiados pelos povos ativos. Esta concepção errônea pode ser encontrada, atualmente, com algumas variações, nos trabalhos de historiadores como J. Gray, G. Mathew, R. Oliver e G. S. P. Freeman-Grenville, ou nos de arqueólogos como J. S. Kirkman, para citar apenas nomes ligados à historiografia da África oriental. A outra concepção, desenvolvida no Ocidente pelo arqueólogo G. N. Chittick e na União Soviética por V. M. Misiugin, ainda é objeto de estudos complementares. Aproxima-se, aliás, do ponto de vista de historiadores africanos, como Joseph Ki-Zerbo e Cheikh Anta Diop. Baseia-se na hipótese de uma participação ativa e dirigente dos africanos em sua própria história. Afirma, fundamentando-se em pesquisas sérias e objetivas, que as dinastias dos principados urbanos são de origem incontestavelmente africana.

O sistema de transmissão de poder

V. M. Misiugin pesquisou a Crônica da cidade de Pate, demonstrando que lá existia, antes do advento da Dinastia Nabkhani, um Estado dirigido pelos Wapate, antiga aristocracia que gozava do privilégio do poder real e portava o título de mfalme. “Em virtude das regras jurídicas consagradas pela tradição para o título e a função de mfalme, a dinastia reinante de Pate devia conservar, como necessidade de sobrevivência, um sistema de divisão em grupos por grau de parentesco. Nesse sistema os homens do clã Wapate que portavam e transmitiam o título de mfalme pertenciam ao mesmo grupo de idade [à mesma geração] - o ndugu. Nestas condições, o título de mfalme era transmitido, não de um indivíduo para o outro, mas de uma geração a outra, ou seja, a todo o ndugu. Como os Wapate eram uma aristocracia fechada, o ndugu devia ser bastante restrito, mas contava alguns indivíduos. O título de mfalme não era vitalício; passava de um indivíduo a outro do ndugu, à medida que cada um atingia a maioridade. Um homem atingia formalmente a maioridade ao se casar. Em razão do caráter fechado do clã aristocrático, os homens casavam com mulheres do mesmo clã, que, por sua vez, faziam parte do ndugu da mesma geração. A transmissão do título de mfalme ocorria durante a cerimônia do casamento. De acordo com a tradição, todos os Wapate portavam, por certo tempo, o título de mfalme, que conferia o poder supremo. Os homens, então, deviam desempenhar as funções ligadas ao título, enquanto as mulheres eram depositárias deste poder. Assim, Sulaymãn, fundador da dinastia nabkhani, recebeu o título de príncipe, conforme a tradição, por ter esposado uma mulher al-Bataviyuni [Wapate]. O título de príncipe foi-lhe conferido, não porque sua esposa fosse filha do príncipe da época - o que era uma circunstância fortuita -, mas porque ela pertencia ao ndugu da geração seguinte".

Não se pode, no entanto, pela sobrevivência da regra do ndugu, concluir que a sociedade swahili permaneceu no estado clânico: "A regra do ndugu significa, originariamente, que, em determinada época, os Wapate, que tinham preponderância econômica sobre os outros clãs, reservaram para si um elemento do sistema de relações de parentesco, privando, no mesmo ato, os outros do direito ao poder supremo". Conseqüentemente, o advento de Sulaymãn, fundador da Dinastia Nabkhani, e o fato de ter chegado ao poder pelo casamento testemunham a Antigüidade da divisão social em classes entre as populações do litoral. No entanto Sulaymãn não pertencia ao grupo de príncipes Wapate; só era ligado ao clã por sua mulher, através da qual havia recebido o título. Dessa forma, o grupo de príncipes corria o risco de perder o direito ao título, já que pelo regulamento do ngudu, este deveria ser transmitido aos irmãos do marido, que poderiam não ser casados com mulheres wapate. A esposa do príncipe, que pertencia ao clã Wapate, tornava-se, então, depositária do direito abstrato ao título de príncipe, cuja função efetiva era desempenhada pelo marido. Assim, as origens do marido não tinham muita importância; o essencial era que se tornara parte do sistema existente, próprio do litoral africano e originariamente africano.

Tentamos aplicar estes princípios de pesquisa ao estudo da Crônica de Kilwa, e, ao que parece, a regra do ngudu também comandou o modo de transmissão do poder nesta cidade. Isso fica mais claro particularmente na passa- gem do primeiro capítulo, onde é mencionado Muhammad Ibn 'Ali, primeiro príncipe reinante, sucedido por seu terceiro irmão, Baskhãt Ibn 'Ali, e depois pelo filho deste último, 'Ali (Ibn Baskhãt), que, segundo a Crônica, se apropriou do poder em detrimento dos tios paternos, Sulaymãn, al-Hasan e Dãwüd. É clara a alusão à regra de sucessão, que foi transgredida: o poder não deveria ter sido entregue a 'Ali Ibn Baskhãt, mas sim aos tios.Indicação análoga pode ser encontrada no terceiro capítulo da Crônica, que trata dos respectivos direitos dos irmãos al-Hasan Ibn Sulaymãn al-Matün e Dãwud ao título de sultão. Dãwüd, nas funções de sultão, considerava-se representante do irmão durante sua ausência e reconhecia que deveria a ele se submeter, caso voltasse. Essa observação nos parece ainda mais interessante pelo fato de os dois irmãos pertencerem à dinastia Abu al-Mawãhib, originária do Iêmen e à qual se atribui o florescimento da civilização de Kilwa.

É também interessante observar que a Crônica de Kilwa (em sua variante swahili), como a Crônica de Pate, relata que o primeiro sultão da cidade era um persa que esposou a filha do chefe local. Pode-se concluir, pela adoção da regra do ngudu como modo de transmissão do poder, que a organização estatal nas cidades africanas era de origem local, assim como a regra do ndugu era uma instituição social de origem puramente africana. A ascensão ao poder através do casamento com a filha do chefe local não é fenômeno exclusivo de Pate e Kilwa; G. S. P. Freeman-Grenville cita em sua obra muitos outros casos idênticos. Parece, então, possível admitir a hipótese de que a mesma situação de Pate predominou em todo o litoral, sob o aparente domínio do Islã, de seus costumes e regras.

O Islã e a ideologia do poder

A influência do Islã estava ligada ao papel cada vez mais importante das camadas sociais swahili enriquecidas pelo comércio. A situação destas camadas sociais parece ter-se tornado tão boa que a velha aristocracia também tentou reforçar sua posição através do Islã, principalmente por alianças matrimoniais com muçulmanos ricos, que, por sua vez, para se igualarem aos aristocratas locais, tendiam a dizer-se de descendência árabe, às vezes até de famílias árabes ou persas célebres na história dos países muçulmanos.

"Assim, os antigos mitos swahili que narram a chegada de grupos muçulmanos, mais ou menos numerosos, às cidades da África oriental nos séculos VII e VIII e, depois, nos séculos IX e X, são substituídos pelos relatos da chegada, provenientes da Arábia e da Pérsia, dos fundadores das dinastias reinantes em muitas cidades swahili e da fundação destas cidades por árabes e persas". Tais mitos não são fenômenos isolados, podendo-se encontrar muitos deles no Kitãb al-Zanüdj, bem como em outras épocas e outros lugares, dentro e fora da África. Sem dúvida, em virtude de um mito do gênero, a dinastia etíope ainda hoje afirma descender do rei Salomão e da rainha de Sabá. No Sudão oriental, os povos africanos atribuem sua origem a "tribos" árabes que teriam surgido na África. A fundação do Estado do Kanem é atribuída a seu primeiro rei, Sefe, que a tradição identifica com o rei iemenita Sayf Dhu Yazan. A família dos Keita, que governa o Mali, remonta suas origens aos parentes do profeta Maomé. Até na Nigéria subsiste um mito segundo o qual os ancestrais dos Yoruba seriam cananeus vindos da Síria e da Palestina. Como se pode observar, esses mitos sempre atribuem a origem de povos inteiros, a fundação de Estados, a instalação de dinastias reinantes a estrangeiros de raça branca, que teriam chegado à África em épocas remotas, e nunca a fatores ou acontecimentos puramente africanos. Trata-se evidentemente de fenômeno de ordem geral que caracteriza, em alguns casos, as sociedades no momento em que se transformavam em sociedades de classes.Outra evidência indireta desse fenômeno é fornecida por pesquisadores, como A. H. J. Prins, que dá exemplos de grupos que se pretendem de origem árabe ou shirazi, quando não há dúvida sobre sua origem africana.

Conclusão

Parece que a civilização da África oriental, a civilização swahili, foi fruto do desenvolvimento comercial. O comércio, expandindo-se, permitiu seu crescimento e progresso; mas foi também seu ponto fraco, pois não estava ligado ao desenvolvimento das forças produtivas da região. Ao se estudar o nível de ocupação da população, constata-se que a sociedade swahili permaneceu no estágio de desenvolvimento das forças produtivas em que sem dúvida se encontrava antes da expansão de suas atividades comerciais, o que se evidencia pela raridade de utensílios de ferro ou outros metais exumados pelas escavações.

Quase todos os bens produzidos ou obtidos pela sociedade swahili - tanto os produtos de caça quanto o ouro ou o ferro - não se destinavam ao consumo interno, mas à exportação. Ora, o comércio por si só era insuficiente para assegurar a base dessa civilização e seu desenvolvimento. Bastava que as rotas comerciais fossem interditadas, os circuitos comerciais interrompidos para, com a ruína do comércio, essa civilização perder seus elementos fundamentais. Como se sabe, foi exatamente o que aconteceu com as cidades da África oriental.

Avalia-se serem várias as circunstâncias que contribuíram para a decadência da sociedade swahili. A invasão dos Zimba e, parece, a diminuição das chuvas, com a conseqüente modificação no regime das águas constituíram obstáculo ao desenvolvimento das cidades do litoral. Mas a causa principal da decadência, no nosso entender, foi a destruição do comércio marítimo pelos portugueses. Bem armados, equipados com artilharia e concebidos para a guerra marítima, os navios portugueses representavam uma força invencível. Sua constante presença na região sob o comando de Rui Lourenço Ravasco, a captura de vinte navios carregados de mercadorias, a destruição de numerosas embarcações da flotilha de Zanzibar, a pilhagem e destruição de cidades litorâneas da África oriental, principalmente de Kilwa, foram golpes dos quais o comércio marítimo da região jamais se recuperou e sob os quais também pereceu a civilização swahili.


<--1ª Parte


Fontes: Girafa Mania / Scribd / Centro de Línguas FFLCH - USP

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