sábado, 29 de maio de 2010

A Civilização Songhai nos séculos XII ao XVI

As grandes instituições do Estado

O Estado dispunha de importantes recursos para se consolidar e permanecer independente, e de uma força armada permanente, capaz de proteger o império, impor a vontade do soberano a seus súditos e dominar qualquer rebelião. Este aparelho de Estado, poderoso e estável, não era, no entanto, despótico. A justiça, confiada a cádis quase autônomos ou a chefes consuetudinários, preservava a liberdade e os direitos do povo. O estudo das engrenagens do Estado põe em evidência a modernidade do Império Songhai, o qual herdou longa tradição guerreira. Os Songhai não eram camponeses ou comerciantes, mas guerreiros: "Os grandes homens do Songhai", escreveu Mahmud Ka'ti, "eram versados na arte da guerra. Eram bravos e audaciosos e conheciam os ardis da guerra".
A nobreza tinha vocação para as funções políticas e militares. Constituía a parte essencial da cavalaria, ponta-de-lança do exército songhai. Armados de longas lanças, sabres e flechas, os cavaleiros songhai usavam armaduras de ferro sob suas túnicas de guerra. Como os cavalos custavam muito (valiam cerca de dez escravos no século XVI), à cavalaria pertencia uma elite privilegiada. A unidade mais numerosa era a infantaria, que reunia homens de todas as camadas sociais: escravos, baixa nobreza, homens livres etc. Como armas, utilizavam lanças, flechas e escudo de couro ou cobre. Os pescadores do Níger, principalmente os Sorko, constituíam uma flotilha permanente no rio, de mais de 2 mil pirogas. O exército levava estandartes e longas trombetas, os kakaki, seguia uma ordem de marcha e, no combate, procedia à formação em leque.




Ignoram-se os verdadeiros efetivos do exército. As reformas dos askiya Muhammad I e Muhammad II Benkan aumentaram o exército permanente de Gao para 4 mil homens, sem contar os 300 guerreiros da guarda pessoal do soberano, a sunna. Em sua maioria, os soldados eram escravos do askiya, que lhes herdava os bens e podia desposar suas filhas. O exército completo, reunido em 1591 na batalha de Tondibi, contava 30 mil soldados de infantaria e 10 mil cavaleiros. Era a maior força organizada do Sudão ocidental; permitiu que o askiya impusesse sua vontade e trouxe-lhe substanciais butins de guerra.

Recursos financeiros

O soberano de Gao era rico e poderoso. A monarquia dispunha de recursos seguros e permanentes, arrecadados em todo o império e geridos por grande número de funcionários administrativos, sob a direção do kalissa farma. Havia diversas fontes de renda imperial: os rendimentos das propriedades pessoais do soberano, o zakãt, dízimo coletado para o sustento dos pobres, os impostos sobre as colheitas, o gado e a pesca, pagos em espécie, as taxas e os direitos alfandegários sobre a atividade comercial, as contribuições extraordinárias arrecadadas dos comerciantes das grandes cidades e, principalmente, o butim de guerra quase anual. O soberano dispunha, portanto, de rendas inesgotáveis, que gastava como queria. Grande parte era utilizada para a manutenção da corte e do exército permanente. O askiya também contribuía para a construção e restauração de mesquitas, para o sustento dos pobres do império, para as esmolas e os presentes dados aos grandes marabus.

Justiça

A justiça era prerrogativa real. O askiya, como emir dos muçulmanos, pai do povo, delegava-a a representantes completamente independentes do poder central ou de seus funcionários. Pode-se distinguir duas jurisdições, a muçulmana e a consuetudinária.
A primeira regia as comunidades muçulmanos. Inspirava-se no direito maliquita, ensinado nas universidades sudanesas. O cádi era o juiz soberano e Supremo, com cargo vitalício outorgado pelo imperador; a reduzida procura para esse cargo fazia com que, freqüentemente, o askiya nomeasse o cádi à força. Em Tombuctu, durante todo o século XVI, o cargo foi monopólio da família do cádi Mahmud ben 'Umar al-Akit (1498-1548), a que também pertenciam os imãs da mesquita de Sankoré. Em numerosas cidades, o cargo tornou-se hereditário. O cádi era assistido por auxiliares de justiça: oficiais da corte, secretários, notários etc. A execução das penas cabia ao assara mondzo, funcionário do poder imperial. O cádi julgava todos os assuntos, criminais ou comerciais, e não era possível recorrer da sentença. Além disso, atuava como uma espécie de tabelião: registrava alforrias de escravos, partilhas de herança, validava documentos privados etc. O cádi era o verdadeiro chefe da cidade de Tombuctu; sua autoridade exercia-se além do quadro da justiça, protegendo também a liberdade dos cidadãos.
A justiça consuetudinária concernia à maior parte do império, e, mesmo nas grandes cidades muçulmanas, as pessoas resolviam seus conflitos em família ou com o chefe do grupo étnico, de acordo com seus próprios costumes. Em Gao, o conselho imperial mantinha um tribunal para julgar os casos de Estado, geralmente de conspiradores - príncipes e seus cúmplices. Para combater a licenciosidade e, particularmente, o adultério, um flagelo na refinada sociedade da curva do Níger, o askiya Ishak II instituiu um tribunal de adultério que punia severamente os casos de flagrante. Digno de nota é o fato de a população poder fazer uso da justiça em seu próprio benefício através de tribunais competentes, garantia maior da ordem e da liberdade. O Estado songhai favoreceu, deste modo, o desabrochar de brilhante civilização intelectual e de grande desenvolvimento econômico e social.

Desenvolvimento econômico

Por sua localização geográfica no centro do Sahel sudanês, o Império Songhai era uma região privilegiada para os intercâmbios transaarianos. O Níger, que o atravessava de oeste para leste, facilitava as comunicações, e seu vale fértil era intensamente cultivado. Assim, distinguem-se dois setores econômicos, um rural e tradicional, e o outro urbano e comercial.

Setor rural

Os Ta'rik dão-nos pouca informação sobre as atividades rurais. As técnicas agrícolas não evoluíram muito desde aquele tempo. A enxada (o kaunu dos Songhai), os adubos animais, a prática da horticultura no vale, a cultura itinerante na savana etc., são os mesmos há séculos, mas o vale do Níger torna-se mais densamente povoado por indivíduos que praticam a agricultura, a pesca e a criação. As grandes propriedades dos príncipes ou dos ulemás eram expl9radas por escravos estabelecidos em colônias agrícolas. O próprio askiya, grande proprietário de terras, tinha seus campos, espalhados pelo vale, cultivados por comunidades de escravos sob a direção de capatazes, os janja. Uma espécie de imposto era arrecadado sobre as colheitas e enviado a Gao. O mesmo ocorria com os escravos pertencentes a particulares.
A pesca era praticada pelos Sorko, pelos Do e pelos Bozo. Os peixes eram secados ou defumados e vendidos por todo o império. A criação de bovinos e caprinos na região fronteiriça do Sahel e nas regiões de Macina e do Baxunu, bem como a criação de bovinos praticada pelas populações sedentárias do vale do Macina, constituíam importante fonte de leite e carne, principalmente para as populações urbanas.
De fato, grande parte dos produtos agrícolas (cereais, peixe, carne) alimentava o comércio e permitia à população rural obter produtos de primeira necessidade, como o sal.

Setor comercial

As cidades do Sahel sudanês - Walata, Tombuctu, Djenné, Gao -, centros do grande comércio transaariano, tinham contato com os grandes mercados do Saara e com as regiões mais longínquas, como a Europa mediterrânica. Do vale do Níger, partiam caravanas transaarianas, estabelecendo rotas em direção ao norte.


Tombuctu se encontrava na confluência de 4 rotas comerciais do Saara.

As principais eram as de Tombuctu- Teghazza-Tuat rumo ao Tãfilãlet e ao oeste argelino, Tombuctu-Walata-Tichit- -Wadane rumo ao Dra (Dra'a) e ao Tãfilãlet, Gao-Tadmekka-Ghãt rumo à Líbia e ao Egito, Gao--Tadmekka-Ghadames rumo à costa líbia e tuni- siana, e Gao-Haussa-Kanem-Bornu rumo ao vale do Nilo. Como se pode observar, o comércio transaariano dos séculos XV e XVI orientava-se principalmente para o Marrocos, a Argélia e a Líbia. No centro, as minas de sal de Teghazza e os oásis de Tuat e de Ghãt eram as grandes etapas comerciais rumo ao Sudão. O comércio estava em mãos de mercadores árabo-berberes (havia muitos mercadores de Tuat e de Ghadames em Tombuctu), e dos sudaneses Wangara (Manden), Wakore (Soninke), Mossi, Haussa e Songhai. Os pontos de encontro eram as cidades em que os habitantes obtinham grandes benefícios com a corretagem. Alguns comerciantes, bem organizados, tinham sucursais em muitas cidades e acompanhavam, com lucro, a flutuação dos preços. Dispunham de frota comercial no Níger, de camelos e bois para o transporte das mercadorias. O porto de Kabara estava repleto de artigos comerciáveis quando Leão, o Africano, lá chegou, no início do século XVI.
O comércio se fazia por trocas e mais freqüentemente por intermédio de moeda de transferência: cauris para os pequenos negócios, ouro, sal ou cobre, conforme o mercado. O Sudão importava tecidos que vinham, em sua maior parte, da Europa (Veneza, Florença, Gênova, Maiorca, Inglaterra, França etc.), sal de Teghazza e de Idjil, armas, cavalos, cobre, artigos de vidro, açúcar, artesanato magrebino (sapatos, artigos de lã) etc. O sal era a mola-mestra deste comércio. Era moldado em blocos retangulares de 25 a 30 kg, e distribuído por todo o interior do país. Os artigos de exportação do Sudão eram ouro, escravos, marfim, especiarias, nozes-de-cola, artigos de algodão etc. O ouro - em pó (tibar).ou em pepitas -, proveniente das minas de Bambuku, do Burem, da região mossi e principalmente da região ashanti, o Bitu, consti- tuía-se no pivô do comércio transaariano e supria o mercado europeu.
O comércio interno sudanês baseava-se nos produtos locais. Em todas as aglomerações importantes, havia um mercado, lugar de encontro dos camponeses, que trocavam produtos agrícolas e compravam sal, tecidos e demais mercadorias de mascates vindos do norte. Os cereais do delta central ou da região de Dendi, por exemplo, eram encaminhados para Tombuctu, Gao e para o Sahel, enquanto as nozes-de-cola e o ouro seguiam do sul para o norte, de onde saíam as mercadorias transa arianas. Djenné teve papel considerável como mercado de atração e distribuição dos produtos de todo o oeste africano.
Concluindo, o comércio favoreceu o enriquecimento das cidades do vale do Níger bem como a instalação de um padrão de vida razoável no campo. Infelizmente, só envolvia pequena parte dos produtos locais, agrícolas ou artesanais. As mercadorias essenciais eram produtos de extração mineral ou coleta. Em suma, o comércio transaariano apontava antes para um sistema de trocas de produtos que para uma verdadeira economia de mercado baseada na produção local. Não pôde, assim, provocar mudança nas estruturas sociais nem favorecer a revolução tecnológica, permitindo, no entanto, certo progresso material nas condições de vida das populações nigerianas e a ascensão de uma refinada aristocracia. A longa túnica (bubu), os chinelos (babum), o conforto das residências, a dieta variada eram os sinais de progresso na sociedade do Níger.

Sociedade

Em suas estruturas profundas, a sociedade songhai assemelhava-se aos demais grupos sociais do Sudão ocidental. Sua originalidade baseava-se no desenvolvimento de uma economia comercial, a qual deu origem a uma sociedade urbana com atividades diferenciadas, por sua vez um tanto marginal em relação ao conjunto da sociedade, fundamentalmente rural.

Estrutura da sociedade do Niger

Na cidade ou no campo, a sociedade songhai definia-se pela importância atribuída aos laços de parentesco. O elemento básico que coloria todas as instituições sociais na vida cotidiana era a família.
Os clãs agrupavam muitas famílias. As mais antigas eram de origem Soninke (os Turé, os Sylla, os Tunkara, os Cisse, os Diakite, os Drame, os Diwara) . Poucas (os Maiga) eram Songhai, o que levanta o problema da própria estrutura do povo Songhai, bastante miscigenado de Soninke, berberes e outras etnias, como a Manden, a Gobri, a Haussa etc.
Quanto à composição étnica, ela só é mencionada nos Ta'rikh para designar populações servis, ou rurais, presas à cultura dos campos, ou a castas de ofícios. A característica fundamental da sociedade songhai era a hierarquização, que dividia a população em nobreza, homens livres, membros de castas de ofícios e escravos. No Sudão ocidental, a nobreza se distinguia claramente das demais classes, por dedicar-se quase exclusivamente à administração e às armas. Os escravos, bastante numerosos, cumpriam tarefas domésticas ou trabalhavam nos campos, tendo papel político e militar subalterno.

Sociedade rural

Fora do vale do Níger, onde se encontravam as cidades comerciais, os Songhai e os demais povos do império viviam de atividades rurais. Agrupados em aldeias de cabanas redondas, os camponeses dos séculos XV e XVI eram pouco diferentes dos atuais; as estruturas fundamentais não foram modificadas por revolução técnica ou de qualquer outra natureza. Sem dúvida, as condições de vida transformaram-se. As poucas informações dos Ta'rikh mostram uma densa população rural no vale do Níger, principalmente na região de Djenné, que vivia sobretudo da agricultura. Lá também se encontravam artesãos divididos em castas (ferreiros, carpinteiros, ceramistas etc.), mas seu trabalho era temporário e a maior parte deles tirava o sustento das atividades agrícolas. O mesmo devia ocorrer com os pescadores do Níger (os Sorko, os Bozo, os Somono), que cultivavam o solo durante a estação das chuvas. As condições de vida não parecem ter sido tão miseráveis, como afirma Leão, o Africano. Havia segurança e a fome era rara. Os Ta'rikh nos deixam entrever alguns aspectos da vida no campo. Não há, praticamente, nenhuma alusão a revoltas camponesas; a renda exigida pelos senhores nunca era esmagadora para os escravos. O inventário da fortuna de um capataz imperial na região de Dendi dá, ao contrário, a impressão de certo bem-estar no campo. Os camponeses podiam vender parte da produção nos mercados locais, onde obtinham produtos como sal e tecidos, participando, assim, dos intercâmbios comerciais.
O Islã não enraizou no campo: os camponeses mantiveram os valores locais, e as regiões mais rurais, como a de Dendi e as do sul, permaneceram ligadas às crenças tradicionais, apesar da islamização superficial. Deste modo, o campo, aberto à economia comercial, continuou fechado aos valores espirituais originários das cidades, segundo característica fundamental da sociedade do Níger.

As cidades e a sociedade urbana

A grande expansão comercial permitiu o desenvolvimento da civilização urbana em toda a região do Sahel sudanês. Nos séculos XV e XVI, destacam-se as cidades de Walata, Djenné, Tenenku, Tendirma, Tombuctu, Bamba, Gao, Agadez e as cidades haussa de Kano e Katsina. Eram, geralmente, cidades abertas, sem muralhas. O mercado ficava no interior da cidade, e uma população móvel residia em tendas e cabanas nos subúrbios. No centro, encontravam-se casas de alvenaria, no estilo sudanês, de um ou dois andares; um vestíbulo dava acesso a um pátio interno, para o qual abriam-se os quartos.
É necessário dizer mais sobre as três maiores cidades: Tombuctu, Djenné e Gao. Conquistada por Sunni 'Ali por volta de 1468, Tombuctu alcançou o apogeu no século XVI: teria cerca de 80 mil habitantes no reinado do askiya Dãwüd. Era então a capital econômica do império, cidade sagrada do Sudão, célebre pelos homens santos e pela universidade.
Djenné, uma ilha no delta central, ligada econômica e espiritualmente a Tombuctu, com população de 30 a 40 mil habitantes, constituía a aglomeração negra mais importante do interior do Sudão. Dominada por sua bela mesquita, pérola da arte sudanesa, era o grande mercado do sul, tendo contato com a região da savana e da floresta.
Gao, capital política, mais antiga do que as outras, era uma cidade imensa, com cerca de 100 mil habitantes. Sua posição orientava-a para o mundo haussa, para a região do Dendi, a Líbia e o Egito.
Em todas estas cidades, encontrava-se, ao lado de um núcleo Songhai predominante, cuja língua servia de vínculo comum, uma população cosmopolita de árabo-berberes, Mossi, Haussa, Manden (Wangara), Soninke, Fulbe etc.
O mundo urbano era constituído por uma sociedade hierarquizada segundo o modelo sudanês, mas entre os Songhai o critério de diferenciação era econômico. A sociedade urbana compreendia três elementos básicos, os comerciantes, os artesãos e os religiosos, que viviam todos, direta ou indiretamente, do comércio.
Os comerciantes eram, na maioria, estrangeiros; os artesãos e pequenos comerciantes, camada dinâmica e ativa, agrupavam-se em corporações, com suas regras e costumes. Os intelectuais - marabus, estudantes -, pessoas de maneiras requintadas, gozavam de grande consideração social.
Pelo menos ao nível da aristocracia, a sociedade nigeriana denotava organização e refinamento. Gostava de roupas amplas, das clássicas babuchas amarelas, do bem-estar em casa, de pratos bem temperados e principalmente de boa companhia. Isto levou a certa negligência moral, evidenciada pelo grande número de cortesãs e pela devassidão da aristocracia principesca.
A sociedade urbana distinguia-se, portanto, da sociedade tradicional do campo, para onde nunca extravasou. Sua camada dirigente era formada, em geral, por estrangeiros, imbuída de valores islâmicos e comerciais, e parecia justaposta à sociedade global. Do mesmo modo, a burguesia comerciante não conseguiu se implantar solidamente no país, já que sua economia de trocas não permitiu que exercesse sobre a sociedade songhai influência mais profunda e durável.

Desenvolvimento religioso e intelectual

Implantado no Sudão ocidental desde o século XI, o Islã progrediu lenta e desigualmente, acabando por se impor na curva do Níger e na região do Sahel. Em outras partes, aplicou apenas um frágil verniz sobre as antigas crenças, sem se enraizar profundamente. Nas zonas urbanas, o Islã criou uma elite letrada que, através de grande esforço criador, contribuiu para ilustrá-lo e reinterpretá-lo. Este desenvolvimento foi possível graças à prosperidade geral do Sudão, que atraiu, a partir do século XV, grande número de intelectuais estrangeiros, principalmente graças à política benevolente dos soberanos de Gao. Seguindo o exemplo do fundador da dinastia dos askiya, estes cumularam os doutores muçulmanos de honras e presentes, assegurando-lhes grande prestígio social no país. O Askiya Muhammad I adotou uma política muçulmana sistemática, visando implantar e expandir o Islã no Sudão.

Vida religiosa

A religião dominante nos séculos XV e XVI, no entanto, não foi o Islã. A grande maioria dos Songhai e dos povos do império, que viviam no campo, permaneceu ligada às crenças ancestrais da região. Em uma carta a al-Maghili, o Askiya Muhammad I deplora esta situação, que em vão procurou combater.
Os Songhai cultuavam os hole (duplos) e os espíritos que habitavam a natureza, dos quais se podia obter favores. Seu panteão era numeroso, incluindo, entre outros, Harake Dikko, divindade do rio, e Dongo, do trovão. Seus curandeiros mágicos, os sonyanke, considerados descendentes da dinastia deposta dos Sunní, eram venerados pelo povo e protegiam a sociedade contra os espíritos maléficos e os feiticeiros tierkei. Todo chefe de clã promovia um culto aos mortos. Deste modo, a religião tradicional, tão viva no campo, servia à sociedade, protegendo-a, proporcionando-lhe equilíbrio psíquico e continuidade.
Justaposta a estas crenças, a fé islâmica pouco impacto teve no campo. Urbana e aristocrática, acabou sofrendo adaptações para melhor se expandir; já se tratava, portanto, de um islamismo negro-africano, tolerante. Ganhou terreno pela ação do Askiya Muhammad I e dos doutores muçulmanos, bem como pela expansão pacífica do comércio, ao qual era intimamente ligado desde os começos de sua difusão na África negra. Aconselhado pelos grandes doutores al-Maghili de Tuat e al-Suyüti do Cairo, e por grande número de marabus do império, o Askiya Muhammad I combateu os fetiches, perseguiu os companheiros de Sunní, os "maus muçulmanos", impôs o cádi e o direito maliquita a numerosas comunidades e empreendeu a djihãd (guerra santa) contra os infiéis Mossi. Os vendedores ambulantes e outros negociantes fizeram o resto, levando o Islã ao coração das zonas florestais do sul.


Grande Mesquita de Djenné.

Assim, no final do século XVI, a religião islâmica dominava toda a curva do Níger, da região de Macina à do Dendi; seu avanço fora considerável também em outras partes. A vida religiosa pode ser mais bem entendida observando-se as cidades. Djenné e Dia no delta central, Gao, Tombuctu etc. tinham mesquita, imã, cádi, cemitérios e inúmeras escolas dirigidas por homens piedosos e santos, ainda hoje venerados na curva do Níger. Tombuctu serviu de modelo: as três grandes mesquitas - Djinguereber, Sidi Yahyã e Sankore (as duas últimas, construídas na primeira metade do século XV) - e a reputação de seus santos e doutores (o xerife Sidi Yahyã, morto em 1464; O cádi Maqmud ben 'Umar al-Akit, morto em 1548 e muitos membros de sua família, como o cádi al-Akib, que restaurou as grandes mesquitas etc.), tornaram-na conhecida como a cidade santa do Sudão. Sua universidade contribuiu para a difusão da cultura islâmica no Sudão ocidental.

Vida intelectual

O Sudão nigeriano conheceu grande florescimento intelectual nos séculos XV e XVI; o humanismo sudanês impôs-se como componente fundamental do Islã universal. Formada nos séculos XIV e XV nas universidades de al-Karawiyyin em Fés e al-Azhar no Cairo, a elite sudanesa emancipou-se e, por seu próprio esforço, alcançou o apogeu da ciência islâmica. Os centros de movimentação intelectual continuavam a ser as grandes cidades; os lucros advindos do comércio propiciaram o surgimento de uma classe de letrados dedicada à religião e aos estudos. A prosperidade geral atraiu para as cidades do Níger estudiosos de todas as regiões do Sudão e do Sahel.


A Universidade de Sankoré foi o mais
importante centro universitário de Timbuktu.

Sem dúvida, a universidade mais célebre foi a de Tombuctu, que nos deu os dois Ta'rTkh; apesar de escritos no século XVII, constituem a obra histórica mais monumental já produzida no Sudão. A universidade, centro de aquisição e difusão de conhecimento, não era uma instituição organizada como na África setentrional; compreendia grande número de escolas autônomas, destacando-se a famosa mesquita de Sankoré, que ministrava o ensino superior. Tombuctu abrigava, no século XVI, cerca de 124 escolas corânicas freqüentadas por milhares de estudantes de todas as regiões do Sudão e do Sahel, que moravam com os professores ou em alojamentos especiais. Os professores, apesar de não remunerados, não enfrentavam dificuldades materiais, dedicando todo o seu tempo aos estudos.
Havia dois níveis de estudo: o elementar (escola corânica), centrado na leitura e recitação do Corão, e o superior, em que o estudante aprendia a ciência islâmica. Como todas as universidades contemporâneas do mundb muçulmano, a universidade sudanesa ministrava o ensino de humanidades, que comportava as ciências tradicionais - teologia (tawhid), exegese (tafsir )" tradições (hadith), direito maliquita (fikh), gramática, retórica, lógica, astrologia, astronomia, história, geografia etc. Os conhecimentos científicos e matemáticos deviam ser bem rudimentares. O direito maliquita era a especialidade dos doutores de Tombuctu, que os Ta'rikh chamam de "jurisconsultos". Os métodos de ensino pouco evoluíram desde o século XVI, sendo sua característica essencial a explicação e o comentário de textos nos moldes escolásticos.


Ahmad Baba foi um dos mais importantes
doutores em Timbuktu. Foi o último
chanceler da Universidade de Sankoré.

Numerosos professores sudaneses e saarianos aí ensinavam. Destacaram-se no século XV, o xerife Sidi Yahyã e Moadib Muhammad al-Kabãri (originário de Kabara), que formaram os mestres da geração seguinte. O século XVI viu surgir uma série de professores famosos na curva do Níger, muitos deles originários de duas grandes famílias berberes, os Akit e os Anda Ag Muhammad, ligadas entre si por casamentos. Os mais célebres foram o cádi Mahmud ben Umar al-Alkit (1463-1548), jurista e gramático, seu irmão Aihad (morto em 1536), seu primo al-Mukhtãr, seus sobrinhos, entre os quais o famoso 'Abbãs Ahmad Baba ibn Ahmad ben Ahmad Akit (1556-1627).
Pouco nos chegou da grande atividade intelectual dos séculos XV e XVI. No entanto, as obras conhecidas por seus títulos constituem, em geral, trabalhos de erudição que não devem ser subestimados. Os eruditos sudaneses tentaram entender e interpretar a jurisprudência islâmica, teórica e prática, com seus próprios recursos.
Esta cultura islâmica deve, porém, ser situada no contexto geral sudanês. Era fundamentalmente uma cultura de elite, acessível a poucos; embora fosse baseada na escrita, não chegou a integrar as línguas e culturas autóctones. Urbana, permaneceu marginal e desmoronou com as cidades que lhe deram origem.


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