domingo, 19 de setembro de 2010

Idas e vindas

Ex-escravos queriam voltar à África para combater o tráfico. Enquanto isso, famílias de Cabinda educavam seus filhos no Rio para o comércio negreiro


Casal de Cabinda, século XIX.

“O melhor lugar para os libertos africanos e seus descendentes livres, residentes no Império do Brasil, irem e fundarem uma cidade é o lugar chamado Cabinda, no Sudoeste da África, porque os nativos daquele lugar tiveram, ao longo dos anos, o desejo de adquirir civilização européia”.

O trecho acima não é obra de algum governante branco europeu planejando o destino dos negros alforriados. Trata-se de uma carta escrita em 1851 por um ex-escravo e endereçada às autoridades britânicas. Joaquim Nicolau de Brito pleiteava, para si e para uma centena de outros libertos, a oportunidade de viajar de volta à África e lá empreender uma nova colonização, inspirada em formas “civilizadas” de governo.

O grupo queria instalar-se em Cabinda, no litoral da atual Angola, e dedicar-se ao cultivo de produtos agrícolas para consumo e exportação. Com os lucros do trabalho, seus integrantes pagariam o investimento feito em sua viagem.

Para convencer os ingleses a patrociná-los, usaram argumentos afinados com a política antiescravista promovida pela Grã-Bretanha. Prometiam combater o tráfico negreiro na região, por meio do exemplo bem-sucedido do trabalho livre, e propunham até a libertação de escravos – que seriam comprados dos traficantes e teriam dois anos para pagar com seu trabalho o preço do resgate. O grupo liderado por Joaquim Nicolau de Brito deixava bem claro que esse pagamento de dívida não caracterizaria trabalho escravo.

Era este o grande compromisso que assumiam na petição: não se envolverem no comércio negreiro, nem utilizarem trabalho escravo, nem permitirem que seus descendentes o fizessem. Tomaram o cuidado de “jurar sobre a Bíblia” que jamais haviam sido proprietários de escravos no Brasil. Declaravam-se cristãos, e, por isso, conscientes de que o direito de propriedade era exclusivo sobre coisas, não se estendendo às pessoas.

A idéia era reunir o maior número de “pessoas de cor civilizadas” para auxiliar a população local a se organizar. O termo “civilização” é usado diversas vezes no texto. Com ele, os migrantes vindos do Brasil se afastavam dos chamados selvagens do interior da África – a quem, apesar dessa ressalva, tratam de “irmãos”.

Toda essa argumentação surtiu efeito: Lord Palmerston, ministro de Negócios Estrangeiros da Inglaterra, autorizou o apoio ao grupo e ordenou que seus funcionários tomassem as providências necessárias. O problema é que, pouco depois do despacho favorável, ele perdeu seu cargo e, por algum tempo, seu poder. Não há menção a um embarque com essas características nos documentos dos portos nem nos jornais da época.

A carta de Joaquim Nicolau é o único registro conhecido em que os próprios alforriados explicam suas razões para retornar à terra natal. Muitos historiadores afirmam que a maioria dos escravos, depois que obtinha a liberdade, sequer desejava voltar. Ou, se o fazia, normalmente era no fim da vida, para passar seus últimos dias na África. O documento mostra que havia outras motivações para o retorno. Os argumentos de Joaquim Nicolau se parecem muito com o discurso de outros retornados voluntários, libertos africanos e seus descendentes, que partiram do Caribe e dos Estados Unidos rumo à África.

Relatos de viajantes do século XIX descrevem a existência de comunidades de “retornados” libertos na África Ocidental. Mais tarde, estes grupos se tornariam os agudás no Benim, amarôs em Togo e na Nigéria, tá-bom em Gana. Povos que ainda hoje se identificam como descendentes de brasileiros. No litoral de Angola, estreitas conexões motivadas pelo tráfico de escravos aproximaram aquela região do Rio de Janeiro. Há registros de comunidades em Cabinda formadas por libertos vindos do Brasil e do Caribe.

Outras transações também ocorriam entre os portos dos dois lados do Atlântico Sul. Em 1784, um poderoso chefe de Cabinda, o Manfuca Franque Kokelo, entregou seu filho de oito anos a um capitão de navio negreiro para que ele fosse educado no Rio de Janeiro. Quinze anos depois, o jovem Francisco Franque voltava para casa levando na bagagem contatos pessoais e comerciais com a capital do Brasil. Quando a família real se transferiu para cá, em 1808, muito provavelmente Francisco Franque retornou ao Rio de Janeiro com uma delegação que veio firmar acordos de intensificação do tráfico de escravos. O filho do chefe cabinda tornava-se um importante fornecedor de cativos da costa africana.

A prática de enviar os filhos para serem educados no Rio de Janeiro – e para aprenderem os meandros do mercado negreiro – era comum entre as famílias tradicionais dessa região. Mas nem sempre as coisas saíam como o planejado. Em 1810, o príncipe Puna delegou a criação de dois de seus filhos a um capitão. Mas o oficial os transformou em escravos domésticos, e eles precisaram ser resgatados pelo traficante Francisco Franque.

Décadas mais tarde, o traficante Manoel Pinto da Fonseca receberia a mesma incumbência em relação a outro jovem de uma influente linhagem de Cabinda. No entanto, como deixou de receber recursos para essa missão, simplesmente abandonou seu educando. O jovem foi acolhido por um escravo liberto, e aqui surge uma coincidência admirável: este ex-escravo fazia parte do grupo liderado por Joaquim Nicolau, o mesmo que pedia auxílio aos ingleses para migrar. A presença do jovem entre eles poderia ser uma garantia de boa recepção na chegada, dada a importância de sua família em Cabinda.

Considerando o ramo de negócios em que as famílias mais poderosas de Cabinda estavam envolvidas, pode-se questionar se aqueles libertos conseguiriam pôr em prática seu discurso antiescravista. De qualquer forma, o caso é exemplar para destacar a intensidade e as contradições das conexões Angola-Brasil daquela época.

.:: Revista de História da Biblioteca Nacional


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