quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A queda de Cartago

Destruída pelas Guerras Púnicas, a antiga potência marítima do Mediterrâneo foi o último obstáculo enfrentado por Roma antes de se tornar o império mais poderoso do mundo


Os cartaginenses, montados em elefantes, enfrentam os
romanos na batalha de Zama, durante a Segunda Guerra
Púnica, que resultou na derrota para o povo de Cartago.

Há quem considere o desfecho das Guerras Púnicas (264 a.C.-146 a.C.) o maior caso de genocídio da Antiguidade. Se, em outros momentos, os romanos procuraram combinar força militar e diplomacia, neste caso não tiveram qualquer clemência. A ordem na expressão latina "delenda est Carthago" ("Cartago deve ser destruída", em português) foi executada com tamanho rigor que as casas foram demolidas, grande parte da população foi morta, os sobreviventes transformados em escravos e, sobre o solo, foi depositado sal para que nada germinasse. Tamanho foi o estrago em Cartago que não sobraram muitos registros sobre sua civilização, tornando um grande desafio para os historiadores e arqueólogos desvendar um pouco que seja do modo de vida que havia ali.

As Guerras Púnicas são lembradas pelos desdobramentos na História de Roma, já que após a vitória, Roma pôde iniciar um período de grande expansão em que dominaria o Mediterrâneo e se tornaria a principal potência da Antiguidade. No entanto, há mais que se aprender sobre a civilização derrotada, que teve seus dias de glória e esteve perto de derrotar os romanos, o que alteraria completamente a História, tal como a conhecemos.


Personagens da mitologia greco-romana, os amantes
Dido e Eneias teriam fundado Cartago. O quadro de
Claude Lorrain (1600-1682) mostra a vista da cidade.


Uma nova capital

Cartago, ou em fenício Kart-Hadasht, (nova capital), foi uma cidade-estado fenícia, fundada em 814 a.C. pela rainha Dido, irmã do rei Pigmaleão. Nos versos do poeta Virgílio (70 a.C.-19 a.C.), ouvimos que os dois irmãos dividiam o reinado de Tiro, a mais importante cidade da Fenícia, até o momento em que o marido de Dido é traiçoeiramente assassinado. Inconformada, ela ludibria o irmão para reunir o máximo de navios e de escravos e segue para o ocidente. Falta-nos documentação mais precisa do que a lenda. No entanto, deve ser verdadeira ao menos a ocorrência de alguma dissidência, já que, desde o nome, a "nova capital" não aspirava ser apenas mais uma colônia. Em 332 a.C., Tiro é ocupada por Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.), após sete meses de cerco. Nesse momento, no entanto, Cartago já concentrava riquezas invejadas por todo o mundo antigo, além de gozar de enorme influência sobre as demais cidades fenícias.

Os donos dos mares

A localização de Cartago, ao norte da África, parece ter sido cuidadosamente escolhida tanto pelas suas vantagens defensivas quanto pela rota comercial. Apesar de se situar em uma faixa de clima agradável, o deserto se interpunha a qualquer um que pretendesse atacá-la pelo continente, e quem ousasse vir pelo mar teria de se haver com o povo de maior reputação sobre as águas. Tal como Tiro, a cidade era envolta por uma muralha e possuía prédios de vários andares. As ruas eram retas, formando quarteirões regulares. Seu famoso porto, escavado artificialmente, se dividia em duas bacias: uma retangular, destinada às embarcações comerciais; a outra circular, abrigando mais de 200 embarcações militares. Cada um desses navios era impulsionado por cem remos ou mais, dispostos em três níveis - chamados trirremes. Algumas embarcações eram ainda maiores, os pentarremes.

Não eram habilidosos somente na navegação, mas também no comércio, de onde provinha a maior parte de sua riqueza. Seus sofisticados trirremes estabeleciam rotas comerciais do Oriente Médio à Espanha, percorrendo todo o Mediterrâneo, chegando também à Bretanha, ao Mar Báltico e às Ilhas Canárias, na face ocidental da África. Suas embarcações levavam prata e estanho da Espanha, perfumes e tecidos do oriente, ouro africano, cerâmica grega, louça do Egito, mármore do Egeu, peles de cervos, leões, leopardos, presas de elefantes, dentre outros produtos. Seus produtos locais também tinham mercado, como as frutas, a vinha e a oliveira, cultivadas por escravos no interior do continente.

As estruturas de Cartago

Por cerca de 300 anos, a Fenícia, menos um Estado organizado do que uma rede de cidades comerciantes, acumulou grande riqueza. Em especial os metais adquiridos na Espanha lhe garantiam lucros significativos. Ao longo do Mediterrâneo, fundavam diversas feitorias, utilizadas como paradas de pernoite e de abastecimento em suas rotas mar afora. Inicialmente, Cartago não era muito mais do que um desses pontos, assim como a Ilha de Malta ou as colônias na Sardenha e na Sicília. Contudo, a partir do século IX a.C., a Fenícia começa a entrar em decadência devido aos ataques estrangeiros. Após séculos de relações amistosas com os povos vizinhos, os fenícios orientais sucumbem diante do domínio assírio, ao qual se seguiriam o dos babilônios, o dos persas, e o dos macedônios. Ao norte da África, Cartago gozou de relativa tranquilidade por todo esse período e pôde prosperar. Cartago cresceu politicamente ao oferecer proteção às demais cidades fenícias do Mediterrâneo.

O chefe de Estado era um juiz, chamado de sufete, eleito a cada ano. Todavia, o sufete não podia dispor do tesouro ou declarar guerra, restando-lhe, provavelmente, as decisões relativas à moral e aos costumes. O senado, que era quem exercia a política de fato, era chamado de Conselho dos Cem, apesar de contar com 104 membros, oriundos da aristocracia. Havia, também, a Assembleia Popular, acionada nos casos em que o sufete e o Conselho dos Cem divergiam. O corpo político contava também com ministérios designados para atividades específicas.

A relação entre gregos e fenícios parecia combinar admiração e inveja, havendo troca de conhecimento antes de se desentenderem

Poucos povos antigos possuíam constituição escrita, e é possível que os cartagineses a tenham elaborado especialmente para manter seus chefes militares sob rédea curta. Não mostravam grande apreço pelos generais, por mais que lhes dessem autonomia nas frentes de batalha, inclusive para questões diplomáticas. Quando estes falhavam, eram crucificados; e quando vitoriosos, eram logo convidados para a reserva. Comerciantes e políticos concordavam em evitar qualquer estrutura militar consistente, por medo de que os generais impusessem seu poder. Além disso, sendo sua população pequena e dispersa, não lhes convinha a formação de exército próprio, mas a contratação de mercenários. Ainda que Cartago se diferenciasse da Fenícia por ter maiores ambições militares, as forças armadas ainda eram vistas com certo receio por seus cidadãos, que preferiam um exército que pudesse ser dissolvido após cumprir sua missão.

Um povo miscigenado

Costuma-se dizer que os cartagineses eram mais conservadores do que os fenícios orientais. Ao que parece, davam maior importância à monogamia, a religião era mais severa e a educação atendia a fins mais utilitários. Praticamente todos eram alfabetizados, todavia a ênfase estava nas aptidões profissionais.


O quadro acima, de Joseph Mallord William Turner, ilustra a
heróica travessia do cartaginense Aníbal pelos Alpes europeus.
Mesmo com o frio intenso, no final do trajeto o exército
de Cartago ainda contava com 6 mil cavaleiros.

É possível que a diferença de postura entre fenícios orientais e cartagineses fosse mais relativa do que se costuma contar. Porém, ao menos fisicamente, as novas condições geográficas fizeram que se distinguissem. Análises de esqueletos nas sepulturas de Cartago apontam para diferenças entre a aparência de seus habitantes e a dos fenícios típicos. Os traços semíticos se mesclaram a traços africanos, tanto dos povos do deserto quanto dos negros, assim como a gregos e outros estrangeiros. Ao menos quanto à miscigenação não tiveram uma atitude conservadora.

Prévia entre fenícios e gregos

A relação entre gregos e fenícios parecia combinar admiração e inveja, tendo havido constante troca de conhecimento antes de se desentenderem. Contudo, os gregos aprenderam tão bem a arte da navegação com os fenícios que não demorou para que resolvessem testar forças contra eles. A Sardenha e a Sicília eram pontos estratégicos para o comércio marítimo, e controlá-las seria um passo crucial para o domínio do Mediterrâneo. Por volta de 580 a.C., começaram as hostilidades por parte dos gregos, e a tensão política faria que Cartago, ao defender as cidades ameaçadas, predominasse no mundo fenício.

A Fenícia oriental tentava resistir aos ataques de Nabucodonosor II (632 a.C.562 a.C.), que governou durante 43 anos o Império Neobabilônico, ao passo que Cartago se encontrava a uma distância ideal dos conflitos para prestar auxílio sem sofrer ataques em suas portas. Enviava para as colônias, bem-preparados exércitos mercenários, já que sua população era pequena, mas a riqueza abundante. Não raro tais exércitos tinham no comando um siciliano de origem grega, talentoso com as armas e pouco patriótico.


Moeda com o rosto de Nabucodonosor II,
rei do império Neobabilônico - enquanto a
Fenícia oriental resistia aos seus ataques, Cartago
se encontrava a uma distância ideal dos conflitos.

A disputa pelas ilhas seguiu por gerações sem vencedor claro, intensificando-se no século seguinte. Apesar de enviar forças para os confrontos, somente uma vez Cartago sofreu um ataque direto dos gregos. O exército de Agátocles (361 a.C. 289 a.C.), rei da Sicília, vinha sofrendo grandes derrotas para os cartagineses nas cidades da Sicília, ao que ele respondeu com uma estratégia inusitada. Apesar da desvantagem inicial, encaminhou seus soldados para a África, para colocar a matriz em xeque.

Os cartagineses não estavam preparados para tal investida, e nos primeiros dias foram deles as maiores perdas. Porém, as batalhas não adentravam os muros da cidade, que resistia ao cerco, e Agátocles passou a dominar as cercanias de Cartago. Sua intenção não era derrubar Cartago, mas dissuadir os fenícios de prosseguirem nos ataques europeus. Durou cerca de um ano esta situação, terminada em acordo de paz entre os dois povos nos dois continentes.

As batalhas na Sicília foram tão frequentes que o jornalista e historiador alemão Gerhard Herm considera o Rio Halykos (atualmente chamado de Platani, na Sicília) um dos mais disputados de toda a História, passando de mãos alternadamente entre gregos e fenícios. Nenhum dos dois povos obteve grandes vantagens com a guerra, que se estendeu por várias gerações sem definição. Pareciam destinados a dividir a Sicília, assim como dividiam conhecimentos, divindades (como Deméter, deusa da agricultura, e Afrodite, deusa da beleza) e até mesmo alguns de seus guerreiros. Caberia aos romanos, portanto, consolidar o monopólio mediterrâneo com que gregos e fenícios sonhavam.

Um povo notável

De origem semita, os fenícios fundaram Cartago, circunavegaram a África muito antes de Vasco da Gama e inventaram o alfabeto que serviu de base para o nosso

À diferença de qualquer outro império da Antiguidade, o fenício sempre fora disperso, tendo o mar como ligação entre suas partes, embora estivesse centralizado onde hoje fica o Líbano. Talvez esse território descontínuo contribuísse para que os gregos e romanos o tomassem por evasivo e misterioso, somando-se o fato de eles navegarem por terras que os rivais não atingiam. Semitas, parentes próximos dos hebreus e dos árabes, os fenícios passaram de nômades do deserto a desbravadores do mar. Uma das condições iniciais para tanto, no século XI a.C., foi a qualidade dos cedros que havia na costa do Líbano, com a qual aprimoraram as embarcações usadas nos serviços comerciais que prestavam para o Egito. Começaram a desenvolver suas técnicas e logo superaram até mesmo os gregos, que então eram os únicos a cruzar destemidamente o Mediterrâneo. Consolidaram sua hegemonia sobre as águas e enriqueceram com o comércio.

Os fenícios sempre foram um povo de população diminuta e de humilde ocupação territorial. A Fenícia não ocupava muito mais do que 250 km da atual costa libanesa, sendo suas cidades mais importantes Tiro, Sídon e Biblos. Suas colônias mediterrâneas eram simples feitorias que mal adentravam no continente. Tendo sido tão poucos, é surpreendente o tanto que realizaram. Dentre seus méritos náuticos estão as rotas até a Bretanha e o Mar Báltico, quando nenhum outro povo nem sequer sonhava ir tão longe, e a circunavegação da África, mais de 2 mil anos antes de Vasco da Gama (1469-1524). Tudo isso eles fizeram sem o uso de mapas, contando apenas com a habilidade para construir e navegar seus navios.




Construíram, a mando dos egípcios, o primeiro canal de Suez, hoje em ruínas. O faraó Neco, no século VI a.C., encomendou a construção, concluída alguns anos após sua morte. Também eram famosos seus tecidos tingidos de púrpura e seus vasilhames de vidro, cujas técnicas desenvolveram admiravelmente. A principal contribuição dos fenícios, no entanto, é a invenção do alfabeto, em torno de 1000 a.C. Na época, já se usava um sistema silábico, que os fenícios aprimoraram para um alfabeto de 23 letras, base dos alfabetos europeus modernos. Os gregos aprenderam o alfabeto fonético diretamente com os fenícios, o que tornou o aprendizado da escrita muito mais simples e possibilitou o grande avanço cultural da época clássica.

O ponto alto da Fenícia oriental foi de meados do século XII a.C. ao início do século IX a.C. Tendo maior predisposição para o comércio do que para a guerra, não pôde resistir à opressão assíria em 877 a.C., à qual se submeteu por mais de 150 anos. Quando a Assíria foi tomada por Nabucodonosor II, da Babilônia, a cidade fenícia de Tiro impôs forte resistência, conseguindo o feito de resistir a um cerco de 13 anos diante da maior potência militar da época.

Ao fim desses anos, no entanto, a Fenícia teve de se submeter a um rigoroso acordo que envolveu uma vultosa multa e reféns. Após Nabucodonosor, os fenícios estiveram sob o jugo dos persas. Em obediência aos seus novos senhores, envolveram-se nas Guerras Médicas, entre gregos e persas, durante o século V a.C., diante dos quais sofreram uma grande derrota na Batalha de Salamina. O golpe decisivo, contudo, se deu em 332 a.C., no Cerco de Tiro, imposto por Alexandre, o Grande. Para não repetir o mesmo fracasso de Nabucodonosor, ele se empenhou por meses na construção de um dique entre a ilha de Tiro e o continente. Anulando sua principal vantagem, que era a habilidade no mar, Alexandre pôde subjugar os tírios, pondo fim à sua civilização.


2ª Parte -->

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