O adjetivo "púnico" vem do latim poeni, como os romanos se referiam aos cartagineses. Foram três guerras entre 264 a.C. e 146 a.C. A convivência entre os dois povos era pacífica até os romanos desrespeitarem um antigo acordo de não ocupar a Sicília, tendo se estabelecido na cidade de Messana. Os cartagineses retaliaram com uma série de ataques ao sul da Itália. Estava declarada a primeira das Guerras Púnicas. Naquele momento, os cartagineses certamente pensavam ter as maiores chances de vitória, pois ainda que os romanos viessem se expandindo lentamente pela Itália, estavam longe de ser uma força comparável a de seus inimigos habituais, como os gregos.
Até o início da guerra, os romanos não possuíam sequer uma frota naval, e somente ao estudar um navio cartaginês capturado é que puderam desenvolver suas próprias embarcações. Mas eles não só construíram muito rapidamente cem pentarremes, como inovaram com a criação das pontes de abordagem, que foram cruciais em seus combates. Eram grandes pranchas com esporões de ferro nas pontas, que desciam subitamente até o navio adversário, cravando em seu convés. Isso permitiu que a batalha naval se tornasse luta de infantaria, na qual eram superiores.
Aníbal estava destinado a ser a maior ameaça a Roma antes da queda do grande império
Cartago sempre fora uma potência marinha, e os romanos uma força terrestre. No decurso das guerras, tais posições se relativizaram, mas a adaptação mais rápida foi sem dúvida dos romanos. No sétimo ano de guerra, já eram capazes de vencer batalhas navais mesmo com frotas de menor número, em parte graças às pontes de abordagem. Os romanos avançavam na Sicília, que em pouco tempo controlariam, e ocupavam Tunis, próxima da capital. Ao realizarem um cerco a Cartago, só não anteciparam o fim da guerra graças a um mercenário e comandante espartano, Xantipo, que ensinou aos africanos técnicas modernas de combate, pelo uso de elefantes.
Com isso, surpreenderam a potência terrestre tanto quanto as pontes de abordagem surpreenderam a potência naval. Os cartagineses não só mantiveram seus territórios na África como passaram a expandi-los consideravelmente, reavaliando sua tradição de se concentrar no litoral. Contudo, terminaram a primeira guerra com as perdas de Sicília, Sardenha e Córsega para Roma. Não bastasse isso, tiveram de lidar com uma revolta de mercenários que, voltando derrotados, exigiam seu soldo.
Ardorosa fé
Os cartagineses cultuavam Afrodite com cerimônias de defloração de virgens e veneravam o deus Moloc sacrificando crianças na fogueira
Uma das deusas mais cultuadas do panteão grego era, sem dúvida, Afrodite, a quem devemos o adjetivo "afrodisíaco". O culto à deusa incluía cerimônias de defloração de virgens, a prostituição sagrada e verdadeiros festivais de orgias. O que poucos sabem é que a divindade, assim como os costumes que a acompanharam, não eram originariamente gregos. A deusa era chamada de Aschera (em Cartago, Tanit), e foi introduzida ao mundo grego pelos fenícios, como afirmou o historiador Heródoto (485 a.C.420 a.C.)
Na Antiga Fenícia, a prostituição ocorria nos templos com tamanha naturalidade que mesmo os povos bárbaros do ocidente pareceriam, em comparação, um tanto contidos. Fato é que a prostituição sagrada era um costume amplamente disseminado no oriente, praticado por mulheres de toda a sociedade, não apenas as marginalizadas.
Aschera era a deusa-mãe, casada com a divindade maior, El. O deus mais amado da cosmogonia, contudo, era seu filho, Baal, que morria e ressuscitava a cada ano. Sua morte era causada por um ferimento na coxa após o ataque de um porco selvagem, sendo a repetição anual de tal episódio uma representação dos ciclos naturais. Era nos períodos de luto por Baal que as mulheres se entregavam à prostituição sagrada, oferecendo o corpo a estrangeiros, de modo a comprar uma oferenda para o morto. Isto se dava nos templos da deusa-mãe, que também era protetora das águas e conselheira dos deuses.
A licenciosidade sexual dessas cerimônias foi compreendida pelos gregos como ritual de fertilidade, não tendo lhes causado o embaraço que causaria mais tarde aos cristãos. O que repugnava aos gregos, apesar da admiração que nutriam pelos fenícios, era o ritual de sacrifício em nome de Moloc, deus do fogo. O escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880), em seu romance Salambô, de 1862, reuniu boatos que se propagaram ao longo dos séculos para retratar o terrível ritual cartaginês em que se sacrificavam pequenas crianças. A estátua, de sete andares, possuiria braços de bronze movidos por roldanas, por onde as crianças eram empurradas para serem incineradas em oferenda a Moloc. Apesar de não restar nem estátua nem tofete para verificarmos até que ponto a fantasia de Flaubert corresponde aos fatos, o ritual de sacrifício é comprovado por milhares de urnas encontradas pelos arqueólogos contendo ossadas infantis queimadas.
A julgar pelos indícios, a prostituição sagrada era mais frequente na Fenícia, ao passo que o Moloc ocorria especialmente em Cartago. Nas épocas de dificuldades, reuniam-se centenas de crianças, geralmente os primogênitos das melhores famílias, em uma tentativa desesperada de se mudar a sorte. Quando Agátocles de Siracusa, rei da Sicília, montou seu acampamento em frente à Cartago, uma das primeiras providências em reação ao sacrifício de bebês foi reunir 200 crianças de procedência nobre para o ritual, sendo que mais 300 foram oferecidas pelos próprios pais. Não era permitido demonstrar qualquer comoção durante o ritual, o que seria considerado uma ofensa aos deuses.
Por mais que nos pareçam chocantes, devemos evitar tomá-los por um povo desumano devido a seus costumes. Os fenícios, em especial os cartagineses, eram extremamente supersticiosos, acreditando que por toda parte havia gênios maus e bruxas, assim como deuses protetores para diversas atividades. Sentiam que ao assassinar suas crianças satisfaziam as vontades divinas, recorrendo a um ato desesperado para não se sentirem desprotegidos.
É muito provável que seus parentes próximos, os hebreus, em tempos longínquos também tenham praticado rituais semelhantes. Ao menos é uma das interpretações de uma passagem do Velho Testamento, em que Abraão é impedido no último momento de sacrificar seu filho por ordem de Javé. A morte do filho é substituída pela de um cordeiro, eximindo Abraão do ato cruel, ao qual obedeceria a contragosto para provar sua devoção.
A revolta dos mercenários pareceu incontrolável durante quatro anos, ao fim dos quais foi abafada por Amílcar, general que comandou as forças de Cartago na última parte da primeira Guerra Púnica. Quando este, com muita habilidade, pôde dar fim ao conflito interno, foi considerado herói pelos seus compatriotas, de maneira pouco antes vista em Cartago. Os púnicos, a despeito de sua cautela com os militares, resolveram apostar neste general, que, para compensar as perdas de preciosos territórios para os romanos, investiu em bem-sucedidas campanhas na Espanha. Conseguiu ocupar cerca de um terço da península ibérica, constituindo um pequeno império. A exploração de metais espanhóis pôde dar fôlego a Cartago, que se fortificava para a segunda e mais memorável fase das Guerras Púnicas.
Aníbal e a Segunda Guerra Púnica
Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.), historiador romano, considerou essa a guerra mais impressionante de que se tinha notícia até então. O filho do general Amílcar, Aníbal (247 a.C. -183 a.C.), jurara aos 9 anos de idade jamais ter relações amistosas com povos romanos. Estava destinado a ser a maior ameaça a Roma antes da queda do grande império. Em 221 a.C., assumiu o comando na península ibérica, dando continuidade à política expansionista. Quando, dois anos depois, invadiu Sagunto, cidade fundada pelos gregos, os romanos acharam que o cartaginês se expandia demais e cobrou satisfações.
Sagunto não pertencia a Roma, porém Aníbal declarou que essa era sua aliada. Houve um impasse diplomático que poderia terminar em paz, caso Aníbal recuasse. Em Cartago, o sufete e o senado abdicaram da decisão, e coube a Aníbal a iniciativa de permanecer com Sagunto. A Assembleia popular estava a seu favor, e os nobres passaram a incentivá-lo assim que recebeu generosos espólios de Sagunto.
O nome Aníbal significa "amado por Baal", a principal divindade da capital. Confiando em seu deus protetor e na tenacidade militar que lhe rendeu fama, empreendeu um arriscado avanço pelos Alpes, apesar de ele e seus soldados estarem mais habituados ao calor tórrido do que ao gelo das montanhas. A travessia custou muitas vidas, mas ao chegar ao norte italiano, pôde contar com 14 mil gauleses mercenários, que se somaram aos 20 mil infantes e 6 mil cavaleiros que lhe restavam.
Os mercenários de Aníbal associaram-se aos romanos e tornaram inevitável a derrota
No rio Trébia, na província itálica de Emília, em dezembro de 218 a. C., Aníbal demonstrou uma tática que o colocou como um dos maiores estrategistas de todos os tempos, que consistia em atacar pelos flancos, com grande sucesso. Outra grande vitória foi às margens do lago Trasimeno, onde pegou os inimigos de surpresa em um vale estreito, dizimando-os quase completamente. A essa altura, estava sem um olho, perdido por conta de um resfriado, o que não parece ter diminuído sua coragem.
Contudo, Aníbal logo percebeu que não poderia derrubar Roma sem outros apoios, e passou a peregrinar pela Itália em missões diplomáticas. Os romanos preferiram não atacá-lo, e durante mais de um ano, Aníbal caminhou livremente com seu exército pela Itália, tentando convencer as províncias a se rebelarem contra Roma, em troca da isenção de impostos. Algumas cidades como Cápua, além de Felipe V da Macedônia e Siracusa, fecharam com Aníbal, no entanto sua expectativa era de reunir um apoio maior. A Itália era mais coesa do que suspeitava o cartaginês, que, talvez acostumado a associar guerra a negócios, não esperava que a fidelidade dos povos itálicos superasse qualquer vantagem tributária. Enquanto se prolongavam suas buscas por apoio, os romanos obtinham vitórias significativas na Espanha, desprovendo os púnicos de sua maior fonte de riquezas. Também perderam Malta, o último território importante de que dispunham no meio do Mediterrâneo. O exército de Aníbal despontava como a maior esperança dos cartagineses.
Aníbal não pôde salvar seu povo, mas infligiu uma impressionante derrota para os romanos na batalha de Cannae, em 216 a.C. Em semicírculo, a infantaria celta no centro, africanos na retaguarda, e os cavaleiros númidas em brilhante atuação pelos flancos fizeram que 35 mil soldados romanos caíssem. Por muitos anos Aníbal percorreu a Itália como uma ameaça constante, sem, contudo, chegar à capital. Entretanto, nas outras frentes, os romanos venciam Felipe, controlavam Siracusa, retomavam Cápua, e, ao tomarem Cadez, na Espanha, expulsaram completamente os cartagineses de sua península. Por fim, os mercenários de Aníbal mudaram de lado, associando-se aos romanos, tornando inevitável sua derrota em Zama diante de Cipião, o Africano (236 a.C.-184 a.C.), que encerrou a Segunda Guerra Púnica.
A fatídica Terceira Guerra
Foi rigoroso o tratado que Roma impôs, tomando-lhes o território númida na África: uma multa pesada e a proibição de travar qualquer guerra sem autorização prévia. Apesar disso, Aníbal foi recebido como herói por sua bravura. Em outros tempos, teria sido crucificado, no entanto foi acolhido e eleito sufete. Após realizar algumas reformas em sua terra natal, tornou-se conselheiro do rei da Bitínia. Os romanos, temendo uma articulação em segredo contra seu império, pediram sua cabeça. Aníbal se suicidou antes que os soldados o entregassem.
A terceira e última Guerra Púnica se deu em 149 a.C., quando Cartago não significava qualquer ameaça. O senador Catão, ambicionando Tunis, a capital da Tunísia, então o último território em poder dos púnicos, proferiu a sentença de morte a Cartago. O encarregado da tarefa foi o general romano Cipião Emiliano (185 a.C.-129 a.C.), que teria chorado após a vitória.
Derrubada a muralha, os cidadãos cartagineses resistiram por seis dias, lutando bravamente. As mulheres rasparam os cabelos para que se fizessem cordas para as catapultas e os homens preparavam armas às pressas. Apesar dos esforços, a resistência desesperada não foi o suficiente. Roma estava a poucos passos de tomar para si todo o Mediterrâneo, o qual chamaria de Mare Nostrum. As Guerras Púnicas foram divisoras de água na História de Roma, abrindo caminho para um poderio sem precedentes. O temor de Cipião Emiliano, de que um dia Roma enfrentaria destino semelhante ao de Cartago, não ocorreria antes de mais de 500 anos.
.:: Leituras da História
<--1ª Parte
muito bom esse blog !
ResponderExcluircontinuem assim.